spoiler visualizarpedro f. 23/08/2023
Terrivelmente superestimado
O maior dos problemas da obra é sua crise de identidade.
Para um livro que se vende como a história desconstruída de um herói, o protagonista não poderia ser mais heróico. Veja, não há nada de errado com os heróis clássicos, desde que se vendam como tal. A descrição da obra diz que "ninguém sabe ao certo quem é o herói ou o vilão desse fascinante universo". É mentira. Kvothe é um herói clássico: sua bondade, seu mentor, sua orfandade, sua excepcionalidade e o fato de que o universo conspira para dar-lhe a alcunha de salvador são algumas das características que deixam isso claro. Até mesmo o tipo de dificuldades enfrentadas, que nunca são frutos de suas próprias decisões erradas ou imorais, mas sempre causadas por circunstâncias que lhe são alheias, reiteram esse argumento. Quando digo que a obra enfrenta uma crise de identidade não me refiro ao protagonista, mas à obra em si. Parece que o livro não sabe o que de fato é. Na narrativa, não há traços de qualquer coisa além de um herói clássico, mas que acanha-se em revelar-se com tal. É a história enrustida de um herói. Esse é o cerne de minha primeira crítica: a história vende-se baseada numa mentira.
Essa crise de identidade, infelizmente, também torna o protagonista desinteressante. Kvothe congrega em si todas as qualidades e pouquíssimos defeitos. É um protagonista naturalmente bondoso e ético, não enfrenta dilemas morais, e é constantemente injustiçado por personagens planos que reduzem-se a seus caracteres malígnos. Fora isso, Kvothe é universalmente atraente, excepcionalmente inteligente, uma criança prodigiosa. É atlético e heróico, é artista e feiticeiro. Não há área do conhecimento ou da ciência que não domine. Tudo isso torna-o desinteressante. Na realidade, ele é tão carismático quanto um espelho, sobretudo na medida que excita as fantasias de grandeza do leitor (que, devo dizer, é sobretudo um leitor masculino e heterossexual). A vagueza, quero dizer, a falta de sal, na personalidade de Kvothe e dos personagens que o cercam parece ser uma decisão proposital (não necessariamente consciente) para que o público-alvo infle o seu ego ao reconhecer-se no protagonista.
Para além disso, o correr da narrativa também possui outros problemas.
Em primeiro lugar, o narrador em primeira pessoa está fora de lugar. O bom planejamento de escrita começa na escolha do narrador; Rothfuss não fez uma boa escolha. Para estabelecer meu ponto, trago um exemplo do capítulo 68, em minha edição presente na página 514:
"Subi lentamente pela chaminé, usando as projeções de pedra como apoios para as mãos e os pés. Era um dos caminhos mais fáceis para o telhado de Magno. Eu o havia escolhido, em parte, por não ter certeza das habilidades de Moula como alpinista e, em parte, porque meus próprios ferimentos me deixavam com a sensação de não estar propriamente atlético."
Essa é a frieza e o distanciamento, e até mesmo a escolha de vocabulário, típicos de um narrador em terceira pessoa.
Em segundo lugar, é difícil compreender o que o autor entende por capítulo. Não são raros os capítulos que tratam de temáticas distintas, ao passo que são numerosas as decisões difíceis de compreender. Ao ler o livro, perguntava-me constantemente: Por que o autor escolheu dividir isso em vários capítulos? Por que escolheu unir essas temáticas distintas em um único capítulo? Por que essa subdivisão existe? Por que esses constantes saltos geográficos e temporais? Não o digo como acusação, mas a resposta que encontrei parece ser amadorismo.
Em terceiro lugar, o livro toma um ritmo enfadonho. Particularmente, apreciei muitíssimo o começo da obra; a narrativa era promissora e as temáticas eram abundantes. Porém, poucas delas vieram a vingar. Na verdade, as temáticas ou não vingam, ou demoram a vingar ou são esquecidas. Trago como exemplo sua etnia Ruh. Fica evidente que Kvothe faz parte de um grupo étnico específico. Inclusive, existe um interessante subtexto sobre preconceito na obra. Ocorre que eles não parecem possuir uma história em particular, ou língua própria, ou hábitos alimentares específicos, ou vestimentas diferentes, ou nada. O que os diferencia dos demais? As profissões? O nome? O autor parece entendê-los como uma abstração, isso quando não parece esquecer essa temática. São. Por quê? Porque são. Sendo assim, digo que o livro é grande demais, mesmo porque não é profundo em seus temas. É visível quando um tecido está esticado em demasia; o mesmo é válido para narrativas. A obra ganharia muito em ser mais enxuta. Ouso dizer que é quase ofensivo que uma obra tão grande aborde suas temáticas de maneira tão superficial e inconstante.
Há, igualmente, um teor condescendente na obra. O que é a cena em que Kvothe coloca o próprio alaúde exposto ao sol e à umidade (já que está do lado de uma fonte d'água) e diz ao leitor que só os músicos entenderiam sua atitude? Nenhum músico faria isso, pois expor instrumentos de madeira ao sol e à umidade pode rachá-los, desbotá-los ou ainda deixá-los podres. Sei que devemos separar o autor do narrador, mas aqui vai mais um exemplo de uma escrita condescendente e amadora. Outra coisa: Rothfuss é especialista em fazer reflexões vazias em significado, mas cheias de lirismo e palavras floreadas. Isso faz com que a escrita pareça excelente e as reflexões, profundas; mas, uma vez retirados o lirismo e o floreio, não resta nada de significativo.
Finalmente, há uma última problemática que preferi deixar em separado: a misoginia. Quando percebi isso pela primeira vez, achei um traço leve, mas digitei na internet "name of the wind misogyny" e surpreendi-me ao encontrar diversas pessoas reclamando do sexismo na obra; no momento, achei que estavam exagerando. Depois de terminar o livro passei a concordar com todas as críticas: a obra é terrivelmente misógina. Kvothe está inserido em um universo que é quase exclusivamente masculino. E, fora a ausência de personagens femininas em geral, as mulheres, quando aparecem, surgem como alvos de seu heroísmo ou de sua sexualidade, isto é, são princesas a serem salvas ou objetos que lhe provoquem uma ereção. Denna é sua grande e vaga paixão e ocasionalmente precisa ser salva por ele. Feila é simplesmente uma personagem que existe para ser resgatada de um incêndio e para roçar seu seio em Kvothe. Auri é uma tola, um alvo de sua caridade. Talvez a única exceção seja Devi, que exerce algum poder sobre Kvothe, mas que é curiosamente posta em oposição erótica ao protagonista, por mais que de modo discreto. Além disso, a maneira como a figura da mulher no geral é apresentada nas conversas e nas descrições é aviltante.
Entretanto, não acho que a obra seja só defeitos.
Sem sombra de dúvida, o grande acerto da obra é a maneira como a questão monetária é tratada. Ela é complexa e sentimos na pele como a pobreza afeta Kvothe. Esse tema permeia a obra inteira; a todo momento sentimos a importância do dinheiro (na maior parte das vezes, o dinheiro que Kvothe não possui). Em adição, o sistema mágico parece consistente e interessante, bem como a construção de mundo, que apresenta uma complexa malha de lugares, povos e histórias (embora tal aspecto caia no mesmo balaio das temáticas que não chegam a vingar). O livro, por fim, também tem outras pequenas coisas que cativam e lhe dão algum mérito, mas que são pequenas demais para pormenorizá-las.
Em suma, é um livro ruim, mas não terrível, com marketing mentiroso e nenhuma inovação. Não é bem escrito nem tem personagens cativantes e tampouco merece a larga atenção que conseguiu.