Raul Maciel 24/11/2023
Publicado em 1940 e considerado uma obra-prima da literatura fantástica latino-americana, A Invenção de Morel é um livro do autor argentino Adolfo Bioy Casares e é dedicado ao seu grande amigo e também escritor Jorge Luís Borges, que contribuiu com um prólogo que merece atenção especial.
Trata-se da história de um homem que, procurando fugir da justiça, fica sabendo da existência de uma ilha inabitada na qual alguns homens haviam levantado algumas construções, mas, devido a uma moléstia, não havia gente que por lá sobrevivesse. Certo de que nada poderia piorar a sua situação, foi para a tal ilha e lá se instalou. Certo dia, sem que houvesse notado a chegada ou mesmo a aproximação de qualquer barco ou avião, percebe de repente a presença de outras pessoas na ilha — e as toma por veranistas. Entre a curiosidade de observá-las e o medo de ser preso ou de ter descoberto o seu passado, passa a viver na parte mais baixa da ilha (ficando lá sujeito às marés) e a vigiar melhor o dia-a-dia das misteriosas pessoas que haviam aparecido no local. Cauteloso em suas observações, ele decide arriscar contato com uma jovem que lhe chamara a atenção, Faustine. Se de início pensa que está sendo ignorado, em outra tentativa percebe que na verdade não era visto. Alguns dias mais e ele começa a reparar que certas conversas entre os "veranistas" se repetiam: os diálogos e os gestos eram os mesmos que os ocorridos em dias anteriores. A forma como o livro foi escrito torna difícil fazer uma resenha sobre ele sem correr o risco de contar o seu desfecho.
Trecho: "Com lentidão na minha consciência, pontuais na realidade, as palavras e os movimentos de Faustine e do barbudo coincidiram com as suas palavras e os seus movimentos de havia oito dias. O atroz eterno retorno. Incompleto: meu jardinzinho, da outra vez mutilado pelos pés de Morel, é hoje um ponto apagado, com vestígios de flores mortas, achatadas contra a terra."
Contada em primeira pessoa (como uma espécie de diário), a história muitas vezes parece caminhar antes para uma não-solução do que para a solução dos mistérios apresentados. Casares utiliza um narrador-personagem, o que é importantíssimo para o desenvolvimento do texto, pois este, ao contar a história, dá a sua versão (que pode ou não corresponder à verdade — diferentemente do que ocorre nas histórias contadas por um narrador-onisciente), o que por si só já torna mais complexa a história. Mas não bastasse isso, esse narrador explicita diversas vezes que nem ele mesmo consegue precisar a situação e que teme que possa ser tudo fruto de algum delírio ou alucinação. Mas ainda que esse narrador-personagem se demonstrasse totalmente certo dos fatos relatados, você confiaria cegamente em um foragido da justiça? Casares bagunçou as dimensões espacial e temporal para compor essa grande obra — que, sem dúvida, vale a pena ler.
(Muitos veem na trama de A Invenção de Morel uma crítica à tecnologia, o que não me pareceu tão certo durante a leitura do texto. Após ler o livro, procurei material sobre o autor e encontrei uma entrevista dele ao programa Roda Viva, em 1995. Quando perguntado se ele se sentia "esperançoso, cético, assombrado ou indiferente" diante dos "prodígios tecnológicos", a sua resposta foi "creio bastante no progresso e espero que essas promessas se cumpram. Ao menos, essas promessas nos animam. Depois, me desculpem, não há que confundir a vida com a literatura". Assim, talvez a visão de "crítica à tecnologia", apesar de bem aceita, não seja a mais condizente com as intenções do autor.)
site: https://medium.com/@raulmaciel/a-inven%C3%A7%C3%A3o-de-morel-de-adolfo-bioy-casares-5eae5b6163ca