spoiler visualizarMaria Faria 31/07/2021
A romantização de histórias de negligência
O Castelo de Vidro é um relato real e incômodo sobre a sobrevivência de quatro crianças à negligência dos pais.
A narradora e autora é Jeannette, que revela em detalhes como ela e seus três irmãos se desenvolveram criados por pais disfuncionais. A verdade é que Rex e Rose Mary, pais da autora, não se importavam com formalidades e proporcionou aos filhos uma vida nômade, com pouco ou nenhum alimento e muitas incertezas. O que na infância era transformado em aventura para as crianças, na adolescência tornou-se um grande desafio. Eles eram submetidos a frio, fome, abusos psicológicos e sexuais, falta de vestimentas adequadas e suporte psicológico.
É uma autobiografia que demonstra que, apesar de tudo, é possível sobreviver e alcançar o sucesso. É quase um romance que fortalece o argumento de que quanto mais o ser humano tem seus limites testados, mais se sobressairá. Um tratado sobre se tornar uma fortaleza diante dos obstáculos e desafios. É quase um conto de fada sobre alcançar o sucesso após trilhar caminhos ruins.
Entretanto, uma leitura mais atenta é capaz de captar que a história dos Walls é um relato sobre a negligência daqueles que deveriam cuidar e da omissão estatal. Ainda que três dos irmãos tenham superado seu passado horrível em busca do que os pais nunca proporcionaram, a caçula evidencia em seus atos as consequências desse total abandono.
O livro é interessante, uma história real atraente, ainda que difícil de ler. Como leitora, fui tomada por indignação várias vezes e senti quase que um alívio ao saber o desfecho da história. Porém, quando terminamos de ler o livro e nos distanciamos do relato de Jeannette, percebemos quantas discussões estão implícitas na narrativa.
O bullying sofrido nas escolas norte-americanas é muito evidente, o que mostra claramente que a escola, que deveria integrar um rede de defesa da criança e do adolescente, exerce o controverso papel de validar os abusos intrafamiliares. Jeannette e seus irmãos, além de sofrerem com as escolhas nada convencionais dos pais, sofrem indiretas punições quando são perseguidos pelos colegas de escolas ou são rejeitados nos ambientes que frequentam. É um retrato claro do que a sociedade faz com crianças que necessitam de sua atenção e acolhimento.
O comportamento de Rex talvez fosse explicado pelos abusos sofridos em sua infância. Ao apresentar a família de seu pai na narrativa, Jeannette introduz o leitor no lar disfuncional a que Rex fora submetido, ficando claro que ele é o resultado ruim de uma criação nada convencional. Ao evidenciar que sua mãe Rose Mary se tornara tão desprendida e desapegada de valores materiais porque fora vítima de controle rígido por parte da mãe, ela busca mais uma vez explicações para si do que justificaria a postura dos pais, mesmo percebendo que os seus métodos causavam muito sofrimento aos filhos.
Há muitas análises possíveis a partir da leitura de O Castelo de Vidro, o que a torna uma obra inesgotável, capaz de acompanhar os pensamentos do leitor por um longo período.
Leitura recomendadíssima, com uma história tocante e um grande leque de temas a serem explorados.