Kelvin 25/08/2021
A Karol Conká do teatro grego
Na última temporada de Game of Thrones, escutava-se por todo lado o uso da expressão deus ex machina para designar soluções fáceis de roteiro. Aristóteles, quando teve contato com a peça Medeia, de Eurípides, questionou o aparecimento de Egeu (um deus) na trama, para guiar o destino magicamente. Segundo o filósofo, o uso desse recurso é irracional, pois quebra o liame entre a ?necessidade e verossimilhança?. Entretanto, não podemos deixar de reconhecer que o uso desse recurso não toldou completamente as potencialidades criativas de Medeia da mesma forma que aconteceu com Game of Thrones. Eurípides era apelidado, entre as pessoas da sua época, como o ?filho do feirante?, não se sabe se essa informação é verdadeira, mas o fato é que as suas peças retratam, no geral, personagens dos extratos mais baixos da sociedade. A peça Medeia ficou conhecida como o primeiro drama burguês, retratando questões como o ciúme.
A história é sobre uma mulher chamada Medeia, tomada de ciúmes pelo marido, que a deixa para desposar a filha do Rei Creonte. Podemos observar como esse sentimento a corrói por dentro, a ponto de ela enxergar os próprios filhos com horror e tramar planos maquiavélicos para se vingar do ex-marido. Para não cair no lugar comum de condenar apenas a personagem principal, deve-se reconhecer que o personagem Jáson, pai dos filhos de Medeia, também não é flor que se cheire, e a própria Ama, que cuida das crianças, o reconhece. Além de ter rompido com os juramentos sagrados, Jáson reclama da necessidade de existirem mulheres para poder ter filhos. Ele é descrito, na tradição, como um herói, mas um herói problemático, que não se destaca por grandes façanhas físicas, e sim justamente pela covardia de seduzir e ludibriar mulheres. Mais do que isso, ele parece ter uma ideia hipócrita de que na verdade um grande benfeitor, algo que não corresponde às suas ações contraditórias.
?JÁSON: Invoco as divindades como testemunhas do meu desejo de fazer tudo por ti e pelos filhos. O bem de que sou capaz te desagrada e tua intransigência afasta os amigos de ti; sofrerás mais assim.?
A tradição cristã reconhece que as pessoas que se acreditam boas na verdade são más. A santidade, portanto, está em reconhecer a ideia do pecado original. Não percebemos isso nem em Medeia e nem em Jáson. A maldade de Medeia, no entanto, assume ares mais repugnantes apenas por ser mais expressa, enquanto que a maldade de Jáson, um pouco mais contida, pode passar batida, mas ambos sofrem do mesmo mal: acreditam cegamente em suas visões de mundo. A fúria irracional de Medeia, potencializada, vai levá-la a cometer atos vis, como envenenar a filha de Creonte e tramar o assassinato dos seus próprios filhos escorando-se na ideia de que estaria evitando que fossem mortos nas mãos de outros.
Na tragédia grega, partes tenebrosas da história eram trazidas ao palco pela ação de um mensageiro, é o que vemos acontecer, em especial, na cena do envenenamento da filha de Creonte, o mensageiro faz uma descrição horripilante que envolve uma boca espumando e uma cabeça dilacerada por chamas assassinas oriundas de um véu diáfano e da diadema de ouro, presentes encomendados por Medeia. Nessa cena, entendemos que a Arte do Feio é tão importante quanto a Arte do Belo, na medida em que, longe de negá-lo, ressalta-o mais ainda. Espetáculos terríveis como esse, quando aparecem de forma catártica, cumprem o papel da tragédia segundo Aristóteles.
?MENSAGEIRO: um espetáculo terrível se mostrou aos nossos olhos: sua cor mudou e o corpo dobrou-se; ela oscilou e seus formosos membros tremiam, e só teve tempo de voltar até o assento para não cair no chão.
Uma velha criada, pensando tratar-se de algum mal súbito mandado pelos deuses, pôs-se a fazer invocações em altos brados, até que da boca da jovem escorreu esbranquiçada espuma e as pupilas dela.
a infortunada moça abriu os belos olhos e recobrando a voz gemeu horrivelmente.
Exterminava-a dupla calamidade: do diadema de ouro em seus lindos cabelos saía uma torrente sobrenatural de chamas assassinas;o véu envolvente? presente de teus filhos? consumia, ávido,
as carnes alvas da infeliz. Ela inda pôde erguer-se e quis correr dali, envolta em fogo, movendo em todos os sentidos a cabeça no afã de se livrar do adorno flamejante, mas o diadema não saía do lugar
e quanto mais a moça agitava a cabeça mais se alastravam as devoradoras chamas.?
A racionalização freudiana dos atos e a incapacidade de assumir a responsabilidade por suas devassidões (Shakespeare) é o que marca as páginas finais, com Medeia culpando Jáson pelo assassinato de seus filhos, ato que na verdade foi orquestrado por ela mesma. Percebemos que, mesmo determinada a seguir em frente, trechos antes de ela cometer tal barbaridade chega a refletir sobre a imoralidade do ato, mas sem arredar o pé. Ante a tragédia, ela se reconhece como infeliz, mas menos infeliz do que seria quando vê que contribuiu para a infelicidade de Jáson, de quem queria se vingar. Sua felicidade está condicionada, portanto, à felicidade (ou ausência de) alheia, está em jogar na cara de Jáson, pai ausente, a morte dos filhos que, para ele, antes não pareciam tão importantes assim. A peça termina com Medeia sendo divinizada e ascendendo aos céus na carruagem do Sol, de Apolo, na sua felicidade infeliz, delirando e colocando Jáson como o responsável por tudo, ao mesmo tempo em que se regozija em acreditar nisso.
?MEDEIA: Chama-me agora, se quiseres, de leoa e monstro; quis apenas devolver os golpes de teu instável coração como podia.
JÁSON: Mas também sofres. Nossas dores são as mesmas.
MEDEIA: É claro, porém sofro menos se não ris.?
Medeia não deixa em nada a dever para os vilões mais ideológicos de histórias em quadrinhos, como o Thanos ou o Lex Luthor, que não conseguem assumir que são maus e atribuem todas as suas atitudes vis a uma necessidade incontornável em prol de um bem maior. Para muito além da ficção, quantas figuras da realidade, como a Karol Conká, recentemente eliminada do BBB com 99,9% de rejeição, não se assemelham a Medeia? É o tal do sentimentalismo tóxico (já comentado no meu podcast ?BBB 2021 e as consequências do sentimentalismo tóxico?). Quanto mais sentimental uma pessoa é, mais ela consegue achar que sua maldade é justificada e proporcional à maldade que lhe fizeram. Pessoas sentimentais não são inofensivas, é sabido que Hitler chorou com a morte do seu canário. E os exemplos são intermináveis.