Marc 12/06/2022
Ler os clássicos de outras sociedades é sempre problemático. Mesmo os gregos, que tanta influência tem sobre nossa civilização, costumam ser massacrados por anacronismos bizarros, que fazem terra arrasada de seu pensamento e costumes. Imagine leitores que só conhecem as teorias de luta de classes, teorias feministas, sobre racismo, etc, se deparando com um texto em que uma mulher é a personagem principal e comete assassinatos seguidos para se vingar.
Muitos cometem o mesmo tipo de erro que em “O Banquete” de Platão, supondo que os gregos eram tolerantes em relação ao homossexualismo e que foi o cristianismo que o tornou pecado (e crime até pouco tempo atrás). Aqui, não é difícil encontrar quem interprete Medeia como uma mulher inteligente (isso ela é), ativa, independente e que decide ir até às últimas consequências para se livrar de um macho tóxico — desculpe se uso a linguagem mais banal para descrever, mas é assim que várias pessoas leem o texto. Medeia surge como uma heroína, que ousou enfrentar o mandatário de Corinto, seu marido Jasão e se vingar de uma vergonha e injustiça. Mas, no caso de Eurípides as coisas são muito mais complexas.
Antes de tudo, para que se possa compreender melhor o texto, é preciso notar sua estrutura. Eurípides trabalha seus personagens de uma maneira bem diferente de Sófocles (a leitura que mencionei resumidamente acima poderia ser feita em um texto de Sófocles, jamais de Eurípides), sem limitá-los a um elemento definidor, que facilita a vida do leitor. Por exemplo, Antígona trata da honra, do respeito às tradições; mas Medeia não pode ser resumida da mesma forma. Eurípides escolhe não fazer um estudo sobre as motivações, nem sobre as consequências dos atos dos personagens, ele prefere apenas descrever. Há quem pense que ele direciona o texto e que somos levados a pensar que Medeia é uma personagem má, cruel e fria. Ora, ela termina matando os próprios filhos, talvez não seja o caso de tentar resgatar um senso de heroísmo — qualquer que seja — em suas ações. Mas o fato é que ao optar pela mera descrição, sem uma reflexão sobre os acontecimentos, sem mesmo nos contar se houve a conhecida punição dos deuses, característica das tragédias gregas, Eurípides tem muito mais de um autor moderno do que se pensa. Ele consegue deixar ao leitor a interpretação do texto, um feito nada pequeno, levando-se em conta que tal característica levaria bem uns 11 séculos ou mais para ser desenvolvida no Ocidente.
E aqui começam a aparecer as complicações, porque deixar ao leitor (no caso, espectador, porque se trata de uma peça que era encenada e poucos tinham acesso ao texto na época) a interpretação naquele período não era tão arriscado como hoje. Eurípides sabia que essa escolha narrativa levantaria discussões sobre a moralidade do texto, mas jamais poderia prever que milênios depois haveria uma infinidade de “ismos” que fariam interpretações completamente descoladas do contexto de sua sociedade. Não se trata de dizer que Medeia é uma mulher humilhada pelos homens e que decide se vingar e que todas as mulheres independentes são rotuladas de insanas, bruxas e irracionais. Para Eurípides, para os gregos da época, era muito fácil dizer que o texto mostrava os perigos da razão, de como ela pode ser contaminada pela insensatez, mesmo que preserve os procedimentos formais de pensamento.
Medeia é inteligente, descende diretamente do Sol, ou seja, é poderosa e influente. Sua história anterior mostra uma pessoa capaz de ardis e ações inesperadas e ousadas, dignas dos mais inteligentes e capazes. Jasão, seu marido, por outro lado, possui poucas qualidades e essa diferença é muito evidente. De um lado, Medeia, capaz de criar um plano elaborado, manipulando a todos (ela ilude Jasão, dizendo que seu comportamento era irracional e indigno, fazendo com que ele aceite os presentes envenenados para sua noiva); de outro um Jasão interessado apenas em poder, tolo, mas que foi capaz de dizer a única frase verdadeira sobre Medeia, veja só: uma pessoa capaz de fazer o que ela fez a sua família, é uma pessoa sem escrúpulos e capaz de repetir o feito a qualquer momento.
O que detém as leituras de hoje é essa característica mais evidente de Medeia, sua inteligência e ousadia. Ela desobedece os homens e não titubeia em atacar Jasão, o macho escroto, que a troca por uma outra mulher. Mas pouco se fala que essas ações são totalmente desproporcionais. Qual o sentido de sacrificar sua prole para se vingar de um macho tóxico? Ora, isso ocorreria apenas a feministas, defensoras do aborto, que visam se igualar ou suplantar o poder dos homens, afastando tudo que possa lhes parecer rebaixá-las. Assim, ironicamente, ao assumir Medeia como uma figura simbólica, quase como um mito fundador, as feministas terminam (bem freudianamente) assumindo também a presença horripilante de Thanatos em suas pretensões. Trata-se de matar, nos homens, tudo que lhes pareça superior.
Deixando um pouco de lado essas interpretações infundadas sobre o livro, vale a pena pensar sobre a verdadeira questão que Eurípides conseguiu trazer. Que o tenha feito através de uma figura feminina é bastante natural, porque seria um completo abuso, uma contradição em termos, de acordo com a sociedade da época, dizer que um homem poderia ser dominado por hybris, por descomedimento e fúria. Apenas mulheres e os homens mais baixos poderiam ser invadidos por tais sentimentos. E sobre homens vulgares não valeria a pena escrever. Logo, restaria contar uma história sobre uma mulher, de posição elevada e de muita inteligência. Note, mais uma vez, que para poder contar sua história, para poder mostrar que a razão não era tão impenetrável e segura, teve que criar uma mulher que fugia aos padrões do entendimento comum. Também Sófocles o fez em “Antígona”, mas nesse caso, se tratava de mostrar como a tradição deveria sobreviver e ser preservada mesmo pelas pessoas mais frágeis possíveis, até diante de uma tirania, ou seja, há espaços que não podem ser alcançados pelo poder.
Medeia mostra, portanto, esse perigo que ronda a todos. A razão pode se transformar em um método, em procedimentos que seguidos com atenção, asseguram sua correção, mas pode faltar uma coisa muito importante nesse caminho. Quando Medeia decide matar os próprios filhos, seu pensamento é perfeito. Ela raciocina com segurança, consegue chegar a uma conclusão acertada sobre os meios de ferir aquele que a humilhou. Ela sabe que precisa retirar de Jasão aquilo que ele preza, os filhos e a mulher com quem decidiu se casar. Sabe que vai fazer com que ele sinta pelo resto de seus dias. E ainda consegue atacar a cidade, porque Creon morreu junto com a filha. Mas, a despeito da exatidão de seus cálculos, ela também está fazendo um mal a si. Ela diz que deixar os filhos seria entregá-los nas mãos de seus inimigos e eles sofreriam sem que ela pudesse defendê-los. Mas a verdade é que em nenhum momento lhe foi proibido levar as crianças embora junto com ela.
Eurípides desejava criar desconforto no leitor com essa desproporção. E mesmo que Medeia seja capaz de notar que vai lhe custar, ainda assim, continua até o fim. É aqui que aparece a irracionalidade dentro da correção do pensamento. Claro que isso não é tão bem desenvolvido, mas só para adiantar um pouco as coisas, Bauman, em pleno século XX, vai se valer desse tipo de explicação para lidar com o tema do Holocausto: a nação mais desenvolvida do mundo em termos de pensamento, com os maiores filósofos modernos (Kant, Hegel, Nietzsche, Heidegger, entre outros) foi capaz de promover uma das maiores atrocidades da história humana. Havia exatidão em seus cálculos, os métodos científicos eram usados rigorosamente, mas o objetivo era vil e ultrajante. É como se Eurípides nos dissesse que a razão pode servir a qualquer intenção e não é suficiente para lidar com as complexidades dos seres humanos. Ela é um instrumento fabuloso, o único que nos descola um pouco de nossas semelhanças com os animais, mas, elevada a um princípio exclusivo, dominante, se torna tão prejudicial quanto a ira pura.
Eurípides mostra que a ira pode derrubar e desorganizar mesmo uma cidade, se acompanhada dos procedimentos que a razão ensina. É uma combinação poderosa e destrutiva, pois a cabeça consegue seguir os raciocínios e fazer cálculos, mas não consegue enxergar nada sobre o momento seguinte a sua vingança. As consequências a longo prazo não entram nesses raciocínios. Como disse, a razão não é garantia de nada, pois lhe falta alguma coisa e, a despeito da crença dominante, pode ser facilmente dominada pela ira e cometer atrocidades. Acredito que se trata de uma reflexão bastante refinada sobre a racionalidade e seus limites, com uma visão um pouco pessimista e que não indica uma via para recorrermos quando a ira nos domina. Nesse diálogo com Platão e Sócrates, Eurípides mostra que o mal é uma escolha, não ignorância.
Em relação a esse tema há muito que se pensar e dizer. Mas aqui, estamos diante de um autor que pensa o mal proveniente de uma personalidade que tem perfeito domínio da razão e compreende muito bem sua situação e possibilidades. É muito mais comum que o mal seja praticado, em nossos dias, não por uma escolha plena, mas também não por ignorância; nós cometemos o mal porque essas escolhas sequer nos aparecem, ou seja, os seres racionais e inteligentes a que esses autores se dedicavam são muito raros hoje em dia e aparecem mais como casos extremos. Nós, por outro lado, vamos pulando de mesquinharia em mesquinharia, sem conseguir firmar princípios e incapazes de realmente escolher sobre o bem e o mal. Essa, por falta de palavra melhor, degradação das personalidades, ajuda a explicar por quê o próprio texto é muito mal compreendido, porque ele nos parece investido de uma moralidade (questão do patriarcado) que não existia no momento que foi escrito.