Ari Phanie 14/12/2020Como disse Beyoncé: Pretty hurtsComo um dos grandes títulos da literatura feminista, esse livro estava na minha lista fazia algum tempo. Coloquei ele na minha meta e achei que o leria mais cedo, mas que bom que não o fiz. A Manuela Xavier, uma psicanalista e feminista que eu acompanho na rede social há algum tempo e que conheci através de uma amiga, começou a fazer grupos de leituras de grandes clássicos feministas, e achei que seria muito interessante essa leitura conjunta intermediada por uma psicanalista que desenrolaria os pontos mais difíceis e nos ajudaria a refletir mais profundamente sobre os subtemas apresentados no livro. Foi uma viagem intensa e difícil que nos levava a falar e recordar (e talvez trabalhar) muitos dos traumas e dificuldades que todas tivemos com relação ao mito da beleza.
Naomi Wolf, a autora, escreveu esse livro na década de 90, mas quando você começa a ler percebe que houve pouca mudança de lá pra cá. Ainda hoje os padrões de beleza nos influenciam com sua mão de ferro, e continuamos nos sacrificando pela imagem mais perfeita possível, e nos frustrando quando não conseguimos. No entanto, hoje há um movimento muito maior para que você ame o seu próprio corpo como ele é, e esse movimento alcança uma grande parcela das mulheres, mas a máquina bilionária da "beleza padrão" ainda funciona muito bem.
O que é o mito da beleza? É basicamente a imagem ideal determinada pelo patriarcado que diz às mulheres que se elas forem assim, assado; usarem isso ou aquilo; cortarem aqui e ali; encontrarão então sucesso e amor. Essa ficção, como a Wolf chama, cria um sem-fim de sofrimentos e intenções, como a de fazer as mulheres competirem umas com as outras e continuarem submissas aos manuais criados para elas por homens. A ficção da beleza ideal foi criada para comprometer a autoestima das mulheres e fazer o mercado lucrar com isso, e também para colocá-las naquele lugar de subjugação de antigamente.
Quem ousou dizer à mulher que ela merecia mais? Quem ousou dizer à mulher que ela pode ser linda sem precisar recorrer ao mito? As feministas. E não há movimento mais atacado do que o feminismo. Muitos acham que se falar em amar a si próprio, aceitar a si próprio, fazer as pazes com o seu próprio corpo, só pode ser conversa de gente feia. Feminista foi (e ainda é) retratada como a mulher feia, solteirona que odeia homem. Para exemplificar, há a fala da Damares: “Sabem por que elas (feministas) não gostam de homem? Porque são feias e nós somos lindas." As sufragistas também foram humilhadas e depreciadas quando se ergueram. Mas nunca se tratou da nossa imagem, e sim do que o movimento representa.
"(...) não importa qual seja a aparência de uma mulher, ela será usada para prejudicar o que a mulher estiver dizendo e fará com que as observações que ela faça a respeito de aspectos do mito da beleza na sociedade sejam considerados problemas pessoais dela."
A Wolf deixa claro que ela não está "atacando nada que faça as mulheres se sentirem bem; só o que faz com que nos sintamos mal." E que mulher nunca se sentiu mal quando abriu uma revista direcionada ao público feminino e viu aquele corpo, maquiagem, roupa que não tinha? Que mulher não lutou arduamente para ter aquela barriga lisa, aquele bumbum e coxas firmes, ou aquele seio grande e redondo? Ter esse corpo das revistas era para fazê-la feliz mesmo ou para ganhar a atenção e inveja de outros, como as propagandas diziam que faria? Eu me lembro da minha adolescência vendo Glamour, Marie Claire e Vogue, e sempre ficando um pouco insatisfeita porque eu não tinha aquela pele, ou aquele cabelo (eu consegui o cabelo depois com vários tipos de custos), aquela altura, aquele par de seios, aquelas pernas, aquela roupa, batom, sapato... Eu ficava frustrada sempre que abria uma revista dessas. Felizmente eu parei de comprá-las. Mas algumas imagens se infiltraram tão profundamente que até hoje eu não consigo desenraizá-las, e isso me incomoda.
É preciso lembrar que essas revistas antigamente quase não tinham modelos negras, e milhares de meninas negras não tinham uma imagem de beleza para elas. Mesmo que não fosse nenhum benefício para nós, mulheres negras, isso fez falta. E nesse livro, eu também senti falta de um recorte de raça e social econômico. O foco da Wolf e seus exemplos eram de mulheres brancas de classe média, classe média alta. Ela pouco se esforça em levantar dados de como foi/é para as mulheres negras encarar padrões de beleza feitos para mulheres brancas. Os padrões vão muito além do corpo sarado, eles incluem o nariz pequeno, os cabelos lisos, os olhos claros... e eu senti muita falta de um capítulo que abordasse mais a perspectiva da mulher negra. Esse é a principal falha desse livro e da autora.
Finalizando, "a beleza não é universal, nem imutável, embora o mundo ocidental finja que todos os ideais de beleza feminina se originam de uma Mulher Ideal Platônica." No trabalho, a mulher precisa fazer mudanças em sua imagem, se quiser ser levada à sério, e se chegar a um cargo alto, maior vão ser as mudanças na aparência que vai precisar fazer. Na cultuta, filmes, livros, novelas estão cheias das mulheres inteligentes, mas não tão bonitas; e das lindas, mas não tão inteligentes. Ou da dupla de melhores amigas: a bonita, e a sem graça. Para alguns parece não ser comum que uma mulher seja inteligente e bonita, ao mesmo tempo. Em A Religião, a Wolf mostra como as dietas e ritos de beleza criaram uma nova seita, podendo ser tão severa e prejudicial quanto outra doutrina extremista qualquer. Em O Sexo, nós vemos como a mulher foi ensinada a se comportar sexualmente, e como a beleza foi ensinada como um atributo para atrair um parceiro. Em A Fome fala-se sobre as consequências psicológicas e físicas do mito da beleza, com a anorexia e bulimia como as maiores consequências. E em A Violência, vemos como as cirurgias são verdadeiras invasões dos nossos corpos para promover mudanças que na maioria das vezes não precisamos.
O mito da beleza se transforma com o tempo, mas me parece que nunca vai deixar de existir. O que podemos fazer é lutar contra ele, e criar nossos próprios modelos autênticos de beleza. Não existe, nem nunca vai existir uma única beleza, não importa o quanto tentem enfiar isso nas nossas cabeças. Esse livro não nos diz para jogar fora nossa maquiagem, nem parar de comprar as roupas da moda que gostamos, nem ler as revistas femininas que nos interessam, Wolf o escreveu para que pensemos criticamente se fazemos isso porque gostamos e queremos, ou nos foi imposto isso e na realidade, não é o queremos. É uma análise algumas vezes bastante difícil de fazer, mas que vale à pena.
“(...) o que defendo neste livro é o direito de que a mulher escolha a aparência que deseja ter e o que ela deseja ser, em vez de obedecer ao que impõem as forças do mercado e a indústria multibilionária da propaganda”.