Na Nossa Estante 24/09/2017
O Bazar dos Sonhos Ruins
"(...) Quando se começava a engolir merda, isso acabava virando sua dieta." pg. 35
E com essas sábias palavras do mestre Stephen King é que dou início a minha primeira resenha de um livro de contos. Escolhi essa frase, em primeiro lugar por seu impacto, em segundo por representar minha própria filosofia de vida. Aguentar desaforo atrás de desaforo pode nos levar ao desencontro com nós mesmos, acredito eu. A frase foi tirada do conto Milha 81, que abre a coletânea de contos O bazar dos sonhos ruins, publicada este ano pela Suma de Letras, selo da Companhia das Letras.
Como são 20 contos, vou falar daqueles que mais me impactaram, seja pelo horror, pelo absurdo de sua trama, pela magia, ou até mesmo porque me fizeram rir, e muito. Vou falar de cada um pela ordem do livro, não por preferência.
Em Milha 81 somos apresentados a diversas personagens, com personalidades e vidas completamente diferentes, mas que vão se tornar vítimas do mesmo veículo em uma área de descanso abandonada de uma famosa rede de fast-food. O que começa como uma inocente brincadeira de criança, de um menino querendo provar para o irmão mais velho que pode andar com os garotos grandes, acaba se tornando um verdadeiro show de horrores, com uma perua enlameada que mata e some com os corpos de algumas pessoas que surgem em seu caminho, sem deixar quaisquer rastros.
Essa transição de história fraterna para um conto de terror foi bastante sutil, de forma que quando eu percebi, já estava lendo algo totalmente diferente e surpreendente, com um final que me deixou totalmente apavorada e querendo mais.
Meu segundo conto favorito é Batman e Robin tem uma discussão, e só por esse título eu já fiquei curiosa. O enredo gira em torno da relação de pai e filho, com a tocante relação de Dougie Sanderson e seu pai, a quem chama de Pop. O filho visita ao pai ao menos duas vezes na semana, as quartas e domingos, em uma clínica onde está internado por conta do Alzheimer.
Nesse conto vamos acompanhar um almoço de domingo, quando eles vão almoçar com frequência no mesmo restaurante e vemos como o filho se dedica ao pai, mesmo sem este se lembrar da atenção que recebe. O pai é um daqueles personagens que nos faz rir muito, não tanto pela falta de memória, mas mais por sua personalidade, e Dougie é um exemplo de filho. Para saber o motivo do título, só lendo mesmo, a explicação é muito engraçada e me tirou boas risadas.
Duna é o quarto conto da coletânea e o que mais me deixou pensando sobre o motivo de Stephen King não ter transformado em livro, pois apesar de curta, a história tem todos os elementos próprios para prender os leitores que gostam de histórias sobrenaturais. Aqui, acompanhamos o relato de um juiz aposentado ao seu advogado, sobre uma duna capaz de mostrar os nomes de pessoas que vão morrer, tanto de pessoas próximas, quanto de grandes tragédias. O advogado escuta tudo com atenção, sem deixar o ceticismo de lado. E eu fiquei como? Querendo mais, é claro.
Agora vamos falar sobre Garotinho malvado o conto mais aterrorizante do livro para mim, porque morro de medo de histórias que envolvem crianças que praticam o mal, especialmente um mal tão puro como o que nos é apresentado. Segundo palavras do próprio autor, ele decidiu “(...) escrever uma história sobre um garotinho malvado que se mudava para um novo bairro. Não um garoto que fosse literalmente o filho do diabo, mas só malvado por ser malvado, malvado até o último fio de cabelo, a apoteose de todos os garotinhos malvados que já existiram. (...)”, e foi exatamente isso que King nos entregou.
Mais uma vez temos uma pessoa contando sua história, desta vez George Hallas, um prisioneiro no corredor da morte, acusado de matar uma criança a sangue frio. Os eventos que o colocaram nesta posição são relatados ao seu advogado, desde a infância do protagonista, quando o garoto malvado aparece pela primeira vez, até o último momento. O mal encarnado em forma de criança fala muitas coisas ruins a pessoas próximas a George, fazendo com que elas duvidem de si mesmas, façam ou mal a alguém ou a si mesmo, e muitas outras atrocidades. Tudo se encaixa de forma tão assustadora, que em minha visão o garotinho malvado é real, mas você leitor, também pode interpretar como sendo fruto da imaginação de George, vai depender se a história for analisada de forma imaginativa ou pragmática.
Agora vamos ao conto Ur dedicado aos fãs do e-reader mais famoso deste mundo, o Kindle, comercializado pela Amazon. Você que já tem um dispositivo desses e acha que tá por cima da carne seca, não sabe de nada, o Kindle do nosso protagonista, o professor universitário Wesley Smith, é muito melhor que qualquer outro, pois mostra a história da humanidade em diversas dimensões paralelas, onde alguns acontecimentos tiveram um desfecho completamente diferente, desde eleições presidenciais até autores que viveram e produziram muito mais títulos do que os disponíveis em nossa dimensão, além de não debitar do seu cartão de crédito. Nosso sonho!
Até aí tudo bem, afinal de contas, não sendo a realidade em que vivemos, não há nada que se temer. Mas e quando os resultados de busca por jornais começam a mostrar notícias que mostra o futuro em nossa realidade? Neste ponto da história, George já tem a companhia de outro professor, Don Allman, e de um de seus alunos, Robbie Henderson, pois o protagonista ficou com medo de estar ficando louco e preferiu pedir para outros verem seu e-reader. Foi uma das histórias que mais me prendeu, apesar de absurda, eu ri, me assustei e ainda teve um romance para gente torcer.
O último conto sobre o qual vou comentar é intitulado de Fogos de artifício e bebedeira, e se eu tiver que descrevê-lo com apenas uma palavra, tem que ser hilário. Dei muita risada com a história de Alden McCausland e sua mãe, que se envolvem, meio que sem querer, em uma competição de fogos de artificio com outra família, os Massimos, a beira do lago Abenaki. Os dois começam a ter sorte com a morte do patriarca, que vem com um bom montante de dinheiro, e depois com um prêmio de loteria. A única ambição dos dois se torna não fazer nada, além de beber muito, e é o que passam a fazer até certo feriado de 4 de julho.
Nem preciso dizer que bebida e fogos de artifício não combinam, e após alguns anos de saudável competição, que começa a atrair cada vez mais expectadores da cidade para ver o show, a brincadeira se torna um caso de polícia, devido ao contrabando de fogos de artifício ilegais. Gargalhei para valer com esses dois.
Apesar de ter falado mais detalhadamente de apenas seis dos vinte contos do livro, tem muitos outros que gostei, e poucos que nem tanto. Mas não é somente pela qualidade dos contos apresentados que achei O bazar dos sonhos ruins um livro ótimo, o que ele definitivamente é. Cada capítulo conta com uma introdução escrita pelo autor, contando o que o motivou a escrever a história, o que estava passando quando a escreveu, o exercício de empatia que foi contar algumas dessas histórias. A introdução do conto Mister Delícia é uma verdadeira lição para novos e experientes escritores, e também para nós, leitores.
De acordo com Stephen King na introdução do conto O pequeno deus verdade da agonia, o objetivo principal deste livro é entreter, e certamente foi um ótimo entretenimento, mas também foi possível tirar algumas lições sobre diversos temas, como empatia, racismo, machismo, entre outros. O livro é uma ótima opção para quem deseja conhecer a escrita do autor, pois contém histórias de diversos gêneros, não apenas de terror e suspense, pelos quais King é mais conhecido. Para quem já conhece, é também uma forma de firmar ainda mais a admiração pelo talento do autor.
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