Lau 28/12/2022Redação à frenteSei que dei apenas 3,5 estrelas, mas leiam este livro. A avaliação diz respeito mais à minha experiência de leitura (que foi muito interrompida e prejudicou bastante meu envolvimento) do que à história de verdade. Confia, se você quiser suspense, este livro dá-lhe suspense
Até o final fiquei com uma sensação persistente de incômodo que me fez perguntar, como já disseram em outras resenhas "É isso mesmo que estou lendo? É assim que as coisas vão ser e vida que segue?". Temos aqui uma história com tudo a que um romance gótico tem direito mas, de longe, é a psicologia dos personagens o que ela tem de mais fascinante. Em "Sempre vivemos no castelo"... é sublime
Como essa é uma resenha com spoilers, vou pular pras considerações sobre o que interpretei de tudo o que aconteceu. Só escrevendo para ter alguma noção do tamanho da rede psicológica que leva as personagens ao final. A partir de agora você pode ficar entediado e parar de ler, mas preciso colocar em algum lugar
Merricat, sendo uma criança com tendências sociopatas e que sente-se ameaçada quando contrariada, envenena seus familiares naquele fatídico jantar após a terem colocado de castigo sem comer (a narrativa dá uma ênfase muito grande a comida, o que me faz pensar se têm algo a ver com a memória afetiva desse castigo). Constance torna-se a principal suspeita do crime e a mídia faz tanto a sua caveira que, mesmo após ter sido inocentada, a menina continua sendo vista como pária no vilarejo onde moram. O fato de seu pai, em vida, ter sido um agiota deveras desagradável também não colaborou pra imagem da família Blackwood diante da população e esta, amedrontada pelo evento e sempre propensa a criar bodes expiatórios, aproveita o momento de fragilidade das irmãs sobreviventes como oportunidade de vingança. Não só o pai, como a mãe das meninas Blackwood também não devia ser flor que se cheire e tinha desprezo pelos moradores da vila, preconceito que ensinou aos filhos e que certamente incentivou o ódio assassino de Merricat e o distanciamento de Constance no futuro, além, claro, do fato de terem perturbado as suas vidas até 6 anos desde o ocorrido.
Já Constance ficou tão abalada com as repercussões do caso que desenvolveu fobia de sair de casa. E de tudo, isso é o que mais me faz refletir. Merricat sempre foi apegada a Constance, mas será que Constance só não é apegada a irmã porque foi a única que sobrou e porque não consegue sair para se relacionar com outras pessoas? Será que ela só se força a ser feliz com Merricat porque, no fundo, também tem medo de Merricat? E será que Merricat só não matou Constance porque era a única que fazia suas vontades? Afinal, ela é quem cria suas próprias restrições. E Constance, desde pequena tratada como serviçal, sente necessidade de se ser útil.
Merricat vive pensando em ser gentil com o tio Julian, mas não consegue, afinal ele é uma das pessoas que ela queria mortas na noite do jantar. E Constance pode ter se sentido no dever de se conformar com tudo isso, porque não conseguia sair, precisava cuidar do tio e era responsável pela irmã. Em sua cabeça não havia outra opção, a não ser tentar ser feliz com ela e após 6 anos isso se concretizou, de uma maneira torta.
Quando Charles aparece, é óbvio para nós que ele não passa de um interesseiro, mas também serve como uma janela para Constance enxergar outras possibilidades. Ele e Helen mostram que é possível um dia ela sair de casa e ter vida nova, o que ela chega a considerar. Charles é insuportável, podemos até pensar que ele provocou o que aconteceria depois. Mas, quando a casa pega fogo, a responsável pelo incêndio é Merricat e a série de fatos após o incêndio leva Constance a concluir que, realmente, é melhor se contentar com a vida que leva com Merricat e com o que sobrou da casa, sem tentar reconstruir nada, assim é mais seguro. Ambas preferem se isolar ainda mais, até em termos de cômodos, cada vez ficam mais restritas a um espaço só. E isso talvez represente a facilidade que encontraram em se fechar diante do sofrimento e do trauma, sempre mais próximas do mundo de suas próprias mentes, onde encontram a fantasia da felicidade. Os moradores da vila eventualmente se deparam com a mediocridade de seus ataques em rebanho, mas então o estrago já estava feito
A história é narrada do ponto de vista da Merricat, que conta os eventos com singelos toques de humor - às vezes, até de positividade - mas está entorpecida de mecanismos de defesa e, com certeza, não é confiável. Bem como seria do ponto de vista de qualquer outro personagem ali, pois todos, sem exceção, estão sob algum tipo de abalo. Pode-se argumentar que o final das irmãs é feliz, pois mesmo sendo uma felicidade ilusória, isso é melhor que sofrer. Mas a fuga da realidade ao ponto em que chegaram é perturbadora. Até que ponto estamos realmente seguros dentro de nós mesmos?