spoiler visualizarM. Platini 11/01/2022
Personagens ricamente construídos X tramas mal resolvidas
É a segunda história de Murakami que leio. Tinha acabado de ler os três volumes de 1Q84. Confesso que dentro do universo fantástico me dou mais com a ficção científica do que com a fantasia. A impressão que estou construindo acerca do universo (ou dos multiversos) de Murakami é que há sempre algo além do que poderíamos chamar de real concreto que dá o tom de suas histórias. A despeito de passagens sobrerrealistas em que é possível que seres humanos e animais conversem ou que espíritos de pessoas vivas vaguem pela madrugada, o que mais cativa é a construção dos personagens que o autor faz. Esse universo que eu poderia chamar de densamente simples traz um menino de quinze anos cheio de ideias sobre o mundo a partir de suas leituras, um velho que "é fraco da cabeça" mas extremamente cativante, um bibliotecário questionador e generoso, uma mulher talentosa e misteriosa que traz marcas de experiências ruins vividas, entre tantos outras personagens marcantes.
Como parece ser típico de suas obras, Murakami traz muitas menções à literatura, à música erudita, à música popular e à cultura pop do ocidente. Apesar das nuances sobrerreais, os personagens são muito humanos e muito mundanos: desejam, se frustram, comem, cagam, fodem, se enfurecem. Adoro as descrições culinárias que de tão detalhadas nos fazem desejar comer com os personagens.
Os diálogos, que se equilibram entre questões mundanas e os grandes temas éticos de hoje e de sempre, são um ponto forte da obra.
Três pontos me incomodaram.
O enredo começa potente trazendo três histórias aparentemente desconectadas que aos poucos vão se encontrando. Quando os links entre as histórias se estabelecem fortemente o enredo perde ritmo como num anticlímax. Você fica com uma impressão de "Sim, mas e aí?" e fica por isso mesmo.
Há algumas tramas que são abertas mas não são resolvidas a contento. Há quem aprecie esse tipo de narrativa. Particularmente, gosto quando as tramas deixam possibilidades em aberto, mas são bem desenvolvidas até o fim; a impressão que fica com o livro é que algumas tramas são simplesmente abandonadas: [SPOILERS!] 1) o que houve com a investigação dos militares americanos nos anos 1950? Que tipo de resultados geraram, a que conclusões chegaram? 2) Qual a relação entre a alma dos gatos assassinados e o grande projeto de Johnnie Walker? 3) A passagem entre os mundos foi aberta e depois fechada. E qual/como era o outro mundo? Por que aparece aquela espécie de cobra branca no final?
Por fim, incomoda-me a sexualização precoce dos adolescentes. É a segunda história de Murakami em que adolescentes ou crianças fazem sexo com homens ou mulheres muito mais velhos. Não sei se é algo normalizado na cultura japonesa, mas para um livro escrito recentemente, uma criança de 15 anos fazer sexo com uma mulher se 50 anos, ou uma criança de 10 anos fazer sexo com o pai [1Q84], com todas as liberdades poéticas e criativas que possamos dar, com toda a justificativa no universo fantástico para que essas bizarrices sejam tratadas como naturais, é, para dizer o mínimo, problemático.
Um ponto fraco bônus é o diálogo entre as duas mulheres da associação feminista e o bibliotecário Oshima sugerindo que o autor enxerga as questões de gênero mais como exoticidades de gente mal resolvida do que temas a serem enfrentados no nosso tempo. A cena toda foi muito bola fora...
No mais, é um bom livro, uma escrita gostosa de acompanhar, traz personagens cativantes e mais que nos prender, nos conduz de forma tranquila do início ao fim.