Queria Estar Lendo 06/04/2018
Resenha: Feminismo em Comum
Feminismo em Comum, escrito pela filósofa Márcia Tiburi, é o primeiro lançamento do selo Rosa dos Ventos - do Grupo Editorial Record (que enviou esse exemplar em cortesia para a resenha) - e foi a primeira publicação do selo de teor feminista voltado para as mulheres da literatura. Poderia ter sido um baita pé direito na porta para começar bem, mas acabou deixando a desejar.
Feminismo em Comum aborda diversas temáticas do feminismo para tecer explicações; quase um guia para quem está embarcando no movimento e quer entender um pouco mais sobre lugar de fala, feminismo interseccional, a mulher e o trabalho, etc. É um livro bem curto - tem 128 páginas - e em formato pocket.
Infelizmente para mim, os textos da Márcia pareceram perdidos. Muitos questionamentos e abordagens soaram abertos de tal maneira que deixavam no ar mais confusão do que aquela sensação de dúvida a ser instigada, quase como se ela tivesse desistido de escrever aquele trecho ou tivesse se cansado de desenvolver a ideia e tivesse resolvido passar para o próximo parágrafo.
E os comentários e explicações soaram absurdos demais para eu ignorar. O livro vai e volta em ideias, contradiz capítulos e comentários que já passaram, refuta os próprios argumentos de modo a tornar tudo muito bagunçado. Vai além disso: apresenta muitas ideias que passam longe do que deveria ser a apresentação do feminismo.
Os parágrafos enrolam para embelezar trechos quando deveriam apresentar conteúdo e desenvolvimento - como a citação da autora sobre as mulheres que trabalhavam em uma fábrica quando ela foi fazer uma palestra. Teve toda a situação envolvendo diferenças salarias com os homens empregados ali e como as mulheres eram capazes do mesmo que eles (e pobre coitado do padre que não sabia ver isso já que sua visão estava "embasada em uma visão naturalista e essencialista das potencialidades de homens e mulheres" - em resumo, ele foi machista. Mas a autora passou pano).
Dessa situação toda, o que aconteceu: "Não sei como a história acabou. Espero, contudo, que elas tenham conseguido aquilo que quase nenhuma mulher consegue.". Pra que você vai exemplificar uma situação de opressão se não vai desenvolver e dar margem para uma discussão e, principalmente, se não fez nada para mudá-la? Essa história ou um exemplo metafórico seriam o mesmo; no exemplo metafórico, pelo menos, não haveria frustração ao término da leitura. A sensação de "tá, e...? Você nem ao menos questionou para ver se alguma delas tinha algo a dizer a respeito disso?".
Eu li uma resenha dizendo que esse livro era um desserviço ao feminismo e tentei ter esperanças de que alguma coisa pudesse ser salva; ledo engano.
Márcia apresenta ideias revoltantes, algumas que eu me vejo obrigada a enumerar: - culpabilizar vítima pela violência sofrida "A mais difícil das condições é a de vítima, pois, mesmo quando espancada e assassinada, culpada e proscrita, vítima é aquela que desperta em seu algoz o desejo de espancar e assassinar. O sistema de violência opera por repetição de uma lógica (pág. 95)" - culpabilização gourmet, mas culpabilização sim.
- Passar pano em seu familiar agressor porque "ele foi criado assim" "Meu avô espancador, vítima e repetidor do patriarcado (pág. 39)". Uma frase basta para tirar a culpa do homem e colocá-lo como coitado, assim como uma frase bastou para mostrar a culpabilização da mulher e retratar o vitimismo como sendo um exemplo vergonhoso. O que isso quer dizer, afinal? É okay tratar os homens como vítima do machismo, mas as mulheres não podem aceitar esse papel? A ideia é que todos estamos submissos ao patriarcado de maneiras diferentes - sim, os homens podem ser vítimas, mas eles têm privilégios. O patriarcado é a voz deles; ainda que sejam subjugados, ainda estão em posição de poder.
E com licença só para o absurdo que me tirou do sério em relação ao seu avô: "Talvez ele tivesse ódio das mulheres, porque, para começar, tinha ódio da mãe que o deixou sozinho ali no pior dos mundos. (pág. 37). " Realmente não me importa que ela tenha argumentado. Não me importa que ela não tenha usado esse trecho como verdade absoluta; o fato de a autora QUESTIONAR uma situação dessas, de sequer levantar essa hipótese ali com o "talvez" é revoltante.
- Do outro lado, questiona filósofos do passado pelos "pensamentos retrógrados" "Muitos justificarão os filósofos dizendo que são homens de seu tempo [...]" (pág. 70) - sim, ela chega a comentar sobre o fato de filósofos estarem ali para questionar o mundo e seus ideais, mas convenhamos que é mais fácil justificar o pensamento erradico de um pensador do que a agressão de um criminoso.
Ela chega a ter a pataca de dizer que "não adianta responder que as mulheres são vítimas do patriarcado (pág. 95)" quando passou vários parágrafos nos capítulos anteriores mostrando situações em que sim, somos vítimas. Não tem que ter vergonha em dizer isso; não tem nada de "esse argumento reduz as mulheres a pobres coitadas", como a autora comenta. Ser vítima não é ser uma pobre coitada. Mulheres são vítimas da opressão do homem; são vítimas do patriarcado. São vítimas do machismo. E estão lutando contra isso.
Ser vítima não reduz sua força nem sua voz nem sua presença no movimento e na luta. Dizer que aceitar a posição de vítima é aceitar ser uma pobre coitada é desmerecedor, a meu ver. É como mostrar que "nem é assim tão ruim". O patriarcado mata. O machismo mata. O homem mata. Quem eles matam? As mulheres.
Pior ainda em toda essa situação: como a própria citação mostrou, ela mesma disse que seu avô agressor era uma vítima. Então está okay dizer que um homem agrediu sua mulher porque era vítima do patriarcado, mas não é okay aceitar que o patriarcado faz das mulheres suas vítimas? Não tem coerência!
Eu inclusive refuto tudo isso com um único trecho do livro Coragem, da Rose McGowan: "Quem deveria se envergonhar é o assediador, não a vítima, não a sobrevivente. É trágico que tantas de nós tenhamos que sobreviver a esse tipo de merda, e sinto muito se o mesmo aconteceu com você."
Isso sem falar no pouquíssimo e quase ínfimo desenvolvimento sobre as intersecções do feminismo. Um texto desses precisava de um pouco mais de embasamento e pesquisa e até mesmo convite para outras mulheres comentarem a respeito das diversas outras vertentes feministas (até porque não é lugar de fala da autora, mas é lugar de dar espaço a outras mulheres); mencionar a luta das mulheres negras, das mulheres trans, das mulheres pertencentes à comunidade LGBT+, mulheres de diferentes classes sociais, isso não é representar pelo que elas lutam. A autora fez muito pouco para inclui-las além de um capítulo em que mais falou sobre o que significa o feminismo interseccional do que sobre o que é a luta delas e umas poucas citações no resto do texto.
Em vez de levantar discussões interessantes e de apontar as reais problemáticas do patriarcado e do machismo, ficou no ar que a autora preferiu usar comentários mais cautelosos, quase como se tivesse medo de apontar quem são os culpados por tudo que as mulheres sofrem. Como se precisasse abrandar os seus discursos para ser entendida e aceita.
O patriarcado e o machismo são um grande ninho de vespas. Se você quer falar sobre a opressão causada por eles, se quer mostrar o que é feminismo e o que as mulheres aguentam, CUTUQUE. Como o próprio livro diz, se as mulheres não falarem por si mesmas, quem vai?
Feminismo em Comum é para "todas, todos e todes" e acabou extrapolando num discurso que deveria ser, em primeiro lugar e o mais importante deles, para as mulheres.
Uma coisa que eu amei no livro Coragem, da Rose McGowan, é como ela conversava com as mulheres. Sim, você pode ser um homem e pode estar lendo o livro dela (inclusive DEVE) mas o que ela sofreu, o que ela viveu, o que ela entendeu e decidiu, isso é com a gente. É com quem tem a voz contra a opressão; é quem sente o machismo na pele. O feminismo é inclusivo, sim, mas é o movimento das mulheres. É conosco que seu livro tem que falar. É nossa voz que tem que espalhá-lo.
Não consigo e não vou aceitar a ideia de que "a luta é lugar de todos". O feminismo é lugar das mulheres assim como a luta pelos direitos da comunidade LGBT é deles, a luta pelos direitos dos negros é deles, e por assim vai. Quem está de fora pode e deve apoiar, ajudar, incentivar, falar contra a opressão, mas a voz que dita a luta é a quem ela pertence. Não existe discursinho de inclusão nesse caso.
Esse livro fez muito em abrandar comentários e acabou escorregando em quase tudo. Eu salvei muito, muito pouco desses textos. Pequenos trechos que, sozinhos, valem a pena serem reproduzidos - no contexto geral da obra, nem tanto.
"Estamos unidas às feministas do passado e, desse modo, do futuro."
Por último, preciso comentar que para um livro que está sendo vendido como um primeiro passo para quem quer entender mais do movimento como um todo, essa obra não tem absolutamente nada de simples ou didática. É problemática, sim, mas é confusa e muito embelezada. Palavras difíceis, trechos repetitivos que poderiam ter sido simplificados, discussões que não levaram a nada além de confusão.
Feminismo em Comum foi uma grande decepção. E não, não indico esse livro. Se você tiver curiosidade de ler, vale a pena pela discussão, mas não acho que é um pontapé inicial para quem quer pesquisar mais sobre o feminismo. Falou demais e acabou por não representar a voz da luta.
site: http://www.queriaestarlendo.com.br/2018/04/resenha-feminismo-em-comum.html