MatheusPetris 02/03/2023
Furtando Bosques
“Quando sinto e vejo as palavras e as frases surgirem no papel branco
e mesmo que elas me pareçam incompreensíveis…
elas ficam, como uma marca que me pertence”
(José Agrippino de Paula).
Li certa vez que o escritor é, antes de tudo, um leitor. Além disso, todo escritor é um ladrão em potencial. Furta a realidade, furta a literatura, furta o passado (rememorado), furta o tempo todo. Patti Smith nos coloca no vórtex dessas ideias. A organização do seu livro nos permite passear pelos bosques furtados em seu cotidiano. Não se trata de uma mimese. Trata-se da lapidação de uma pedra encontrada em Paris, mas que terá valor em outro lugar. A arte não é mera reprodução da realidade. Nunca foi. É a subversão desta realidade, é sua ressignificação. A ficcionalização desta. A ficção é mais real do que o próprio real.
Quando Jean Luc-Godard assevera que todos os grandes filmes de ficção tendem ao documentário e todos os grandes documentários tendem a ficção, é deste amálgama que ele versa. Uma simbiose entre nós e tudo aquilo que nos toca. É um procedimento estético não só de percepção, mas de criação consciente.
No primeiro capítulo intitulado “Como a mente funciona”, somos convidados a dançar com Patti em seu cotidiano. Com uma prosa poética um tanto quanto fragmentária, elipsada, com imagens que parecem aleatórias, mas se revelerão no capítulo posterior, “Devoção”, fragmentos de ideias, de lampejos, ela destrincha sua mente artística, seus mecanismos de funcionamento. Uma locomotiva incessante.
Não são caminhos lineares, estruturados, não estamos falando de uma “Filosofia da Composição” de Edgar Allan Poe, é a gestação de um conto de forma quase que biologicamente natural, de algo divino. Não se enganem. Não falo com isso que não há uma preocupação formal, tanto que o conto em si, Devoção, é de um apuro estrutural maquinado, uma mistura entre tempos diferentes, epístolas e um apuro espacial fundamental para seu eixo; contudo, a revelação das imagens que o inspiraram, são cacos rabiscados.
Filmes vistos, trailers, memórias de outros filmes, uma patinadora que a encanta na TV enquanto está prestes a dormir, viagens, memórias com a família, leituras dispersas, aleatoriedades. O caldeirão de Smith exige bruxaria. Roberto Piva não metaforizava quando dizia que os poetas eram bruxos.
Escrito em um trem. O conto pode ter sido graficalizado neste, mas foi escrito durante toda a viagem. Em cada vislumbre, em cada sentimento, em cada racionalização. No capítulo final, quando ela tenta investigar o movimento de escrever e só chega a resposta do escrever pelo escrever, ou seja, do escrever enquanto um meio, enquanto um grito que a chama e é uma chama, conclui-se o processo cíclico de sua criação literária.
O fato de Patti Smith ter passeado por tantas artes diferentes, furtando bosques pelos mais diferentes motivos — nunca objetivos —, denota aquilo que ela chama de “chamado à ação" quando estava lendo o manuscrito inacabado de Albert Cumus, “O primeiro homem”. Entretanto, o “chamado à ação” não acontece apenas quando de frente com grandes obras, mas acontece quando ela respira, quando ela observa, quando ela sente, quando ela pensa. Escrever é um modo orgânico de ser.