Paulo 13/08/2023
Absolutamente visceral e agressivamente autorevelador.
Como com outros livros que acabei lendo, descobri esse e o autor, talvez fosse outro dos dois títulos dele então disponíveis, ao pegá-lo em meio a tantos outros para guardar na livraria onde trabalho. A capa era interessante, e depois de pesquisar sobre o autor, sua biografia e seu contexto literário, seu renome já cedo, imediatamente coloquei o autor e os dois títulos na minha lista mental, cujos nomes todos acabei esquecendo. Resumindo a história e o passar de alguns meses, consegui redescobrir e localizar os livros, e num atendimento eu disse a uma cliente, respondendo uma pergunta específica dela, que esse livro (o outro dele já não tinha mais) era um que eu queria que a editora não podia me dar, mostrei e ela ficou com o livro nas mãos. No meu almoço, literalmente logo após terminar esse atendimento, uma colega veio me procurar na cozinha e disse, me entregando um livro, "uma cliente comprou um livro pra você", era "O Fim de Eddy", que logo estaria esgotado na editora...
Fui surpreendido pelo livro, fiquei muito mais intrigado e faminto por ele do que eu esperava. "O Fim de Eddy" é aparentemente uma autobiografia numa lírica de romance (o primeiro de Édouard Louis), possivelmente autoficção, não há afirmação categórica sobre isso, que relata a vida num vilarejo num interior da França na segunda metade dos anos 90 e início dos anos 2000, que aliás é mais ou menos como se chama a segunda parte do livro. Édouard - Eddy - relata como foi ser nesse espaço geográfico e nessas épocas (pouco distantes dos debates infindáveis e inescapáveis que passariam a eclodir desde a [nossa] década passada) um menino gay, desde criança totalmente fora da heteronormatividade brutalmente imposta e exigida, e também como era ser muito pobre, e ainda que ele não fosse explícito também sobre as diferenças de classes elas são dolorosamente nítidas, na verdade quase impossíveis de serem ignoradas pelo próprio relator, os homens abandonavam os estudos para trabalhar na fábrica, onde arruinavam sua coluna (o próprio pai gritando de dor), e as mulheres que queriam trabalhar podiam o fazer como caixas de supermercado, entre outras profissões não ocupadas por homens, e assim tinham problemas graves e crônicos nas mãos; além do racismo e xenofobia que também ferviam naquele lugar/tempo.
Édouard se expõe visceralmente, se revela de forma quase agressiva e assim revela suas humilhações, suas dores, as violências que sofreu, a violência que, praticamente por questão de sobrevivência, teve que praticar contra si mesmo. Sua sinceridade sobre algumas perspectivas e pensamentos que tinha nessa linha do tempo chegam a ser até quase irreverentes, hoje potencialmente problemáticos, a forma como via seu pai, como um homem grotesco, deve ser chocante para as pessoas mais convencionais, embora ele fosse mesmo um homem grotesco e extremamente bruto como os homens "do vilajero" aprendiam que era o único jeito de um homem ser.
Uma coisa muito interessante é que logo de início, sem mencionar a psicologia, sem explicitar esse entendimento da forma como colocarei agora, é como Édouard evidencia uma quase trivialidade através dos seus relatos e através de fatos, e também de sua própria percepção sagaz e a essa altura inevitavelmente afiada e sua maneira pungente mas não tão explícita de descrever, a quase trivialidade da natureza inócua, imprevisível e não opcional das "variantes da sexualidade humana", como coloca a psicologia. Louis é só mais um que evidencia isso ao relatar que desde criança teve "os trejeitos", a atração por homens, a falta de atração por mulheres e que queria e tentou muito, de várias formas e por muito tempo, ser uma coisa e não outra. A trivialidade: é da natureza do seu crescimento e é imutável sua sexualidade. Dessa mesma maneira ele também mostra a cópia de comportamentos que são os filhos ao longo das gerações.
A tradução literal do título original seria algo como "Acabar com Eddy Bellegueule", talvez um pouco mais sugestivo e impressionante que a escolha da tradução brasileira.
É interessante também como Édouard e ou editora escolhem a forma do texto: as falas dos outros personagens são inseridas em itálico no meio de sua narração.
Alguns detalhes narrativos ou descritivos parecem contraditórios ou mal conectados, talvez apenas como uma escolha narrativa, mas por outro lado Édouard transita em idas e vindas num tempo narrativo que parece curto sem perder a coesão, ele puxa ganchos nas histórias e vai desenvolvendo habilmente cada uma delas, retornando ao relato anterior ou não, e se ele deixa uma informação impactante incompleta no fim de alguma parte parece que é propositalmente para nos deixar curiosos e intrigados, esperando uma retomada do relato, ele flui o texto dessa forma instigante como numa ficção muito bem amarrada.
O texto (ou sua vida, que assim o foi) é tão visceral que mesmo numa mudança de vida positiva - a própria mudança carregada de densidade - ao fim desse relato ele não termina com um "finalmente..." ou com uma definitiva expectativa de subversão de sua vida, mas com palavras mais uma vez lhe ditas, como um fato reiterado e uma previsão de que, junto com as palavras de todos seus anos, elas jamais lhe abandonarão.
Tem de ser muito insensível, ou sei lá o quê, cruel, ou alheio ao gênero não ficcional do livro, para não se afligir desde o começo com as palavras de Édouard. Não exagero ao dizer que esse livro me serviu de inspiração para alguns dias duros enquanto eu o lia e para algumas atitudes relativamente banais que eu tive que tomar querendo "ser um durão" e que tomei pensando "se o Eddy passou por...", quase adotando um "o que o Édouard faria?".