Laura | 03/12/2022
O dom da escrita caiu sobre Kazuo Ishiguro
"Porque em algum lugar, lá no fundo, uma parte de nós permaneceu igual: receosos do mundo em volta e - por mais que nos envergonhássemos disso - incapazes de deixar o outro partir de uma vez por todas".
"Não me abandone jamais" é uma distopia que conta as recordações de Kath e sua relação com Tommy e Ruth. O livro é dividido em três partes e, apesar de não haver titulação dessas partes, é possível perceber que a primeira fala sobre a infância dos personagens, enquanto a segunda trata sobre a adolescência e o amadurecimento e a terceira sobre as obrigações da fase adulta e sobre o curso incontrolável do destino.
Kath é a narradora dessa história e retrata os acontecimentos como uma exímia observadora, detalhando na medida certa e nos deixando entender seu ponto de vista (me senti como uma psicóloga que escuta os fatos e daí compreende como a pessoa se tornou quem é). A história perpassa pela doçura da infância, por amizades tóxicas, amores não vividos e demonstra, sutilmente, como nossas relações podem interferir no desenrolar da vida.
A história é muito interessante e realmente curiosa, salpicada por uma boa dose de melancolia (não recomendo lê-la em momentos depressivos) mas o que me chamou atenção nesse livro e o que me fez favoritá-lo não é, nem de longe, a narrativa. Para falar a verdade, todo o mistério da história se desfez para mim quando li as orelhas e percebi que se tratava do roteiro de um filme que eu havia visto há muito tempo atrás.
Enfim, a genialidade do livro vem pela escrita de Kazuo Ishiguro (tão genial que eu simplesmente estou há pelo menos 30min tentando escrever essa resenha para explicar o quão profundo ele toca, mas só consegui escrever isso aqui). Se eu pudesse dar um título para esse autor, seria "o Rei das Camadas".
Kazuo não é o tipo de autor que amarra os capítulos de uma forma que te obriga a ler mais pelo desespero de saber como a história se desenrola, ele te faz querer continuar simplesmente porque é prazeroso ler o que ele escreveu. Sei que ficou difícil de entender, então vou dar um exemplo: não existe nada mais angustiante do que uma pessoa que começa a contar uma história, abre um parêntese sobre um assunto qualquer e se perde sobre o que estava falando antes, deixando a história com "burados", meio desconexa. Kazuo Ishiguro é o exato oposto disso. Ele consegue abrir parêntesis, comentários, até mesmo contar outra história dentro da história e sempre retoma o assunto com maestria, sem se tornar repetitivo, mas com uma naturalidade de quem diz "ah, lembra do que eu estava dizendo, então..."
Mas as camadas não estão só na construção do texto, elas estão na profundidade e na representatividade de cada elemento da história. Durante a leitura é constante a sensação de estar-se referindo a muito mais do que está escrito; o livro não fala simplesmente da realidade desses jovens, mas ela desnuda um pouco de quem somos, das nossas expectativas com a vida e sobre o poder (e não poder) de escolha.
Sinto que vou precisar reler mais algumas vezes para aproveitar devidamente essas analogias (não que eu já não fosse reler só pela satisfação kkkk).
P.S.: Gerson, Stéfano, Vanessa, Joana e Euclides, obrigada por me presentearem com esse achado. Vocês são os melhores colegas que eu poderia ter