Patricia 20/01/2023
Alguém aí pediu um livro cheio de estereótipos raciais + geográficos + gênero?
Novamente me deparo com um livro que no Goodreads foi vencedor de uma categoria - melhor livro de Ficção Científica 2017 (?!?!?) - o que me deixou bastante empolgada, mas que no final acabo achando de uma mediocridade...
No começo eu estava tentada a dar 3/5 para Artemis de Andy Weir. Não li "Perdido em Marte" nem assisti ao filme, portanto tinha zero expectativas sobre "Artemis" mas a premissa dele me animou - ler a perspectiva de alguém criado na lua, como assim? que cidade é essa? como eles conseguiram ter uma colônia na Lua?! - mas logo essa experiência se transformou em um verdadeiro martírio literário. Tive que evocar aquela determinação que nos faz terminar de ler um livro que nos desagrada, nem que seja só para poder reclamar dele com propriedade. Eis-me aqui.
- Personagem principal difícil de se conectar, suas motivações não me encantaram, se ela ama Artemis eu torço para Artemis ser destruída, se ela fica triste, eu sorrio: isso foi o tanto que gostei de Jazz. Piadas dignas de um adolescente classe média estadunidense no ensino médio. Diálogos desinteressantes. Há "quebra da quarta parede" para fornecer explicações, algumas sobre o funcionamento da cidade espacial, portanto bem-vindas, mas outras para introduzir as infames piadinhas e observações aborrecentes de mal gosto.....Dispensável.
- "Gente a minha personagem ***feminina*** é tão legal, diferentona e rebelde!!! só pra enfatizar isso, vou repetir 3832746152 vezes durante o livro o quanto ela é TRANSONA!!! Nossa como é transuda essa Jazz!!! Só vive de pegação com os caras por aí, todo mundo repete isso o tempo todo, viu? ela também repete bastante essa falácia, só pra não deixar dúvidas de que essa é a personalidade dela: ser transona e rebelde RBD ;)"
- Por falar nisso, se a gente esquece por um minuto que a Jazz é uma mulher asiática marrom de 26 anos, cuja família é da Arábia Saudita mas que cresceu na Lua, basta trocá-la por um cara jovem, branco, da classe média estadunidense (do tipo que tem aos montes em seriados dos EUA) e pronto! temos nossa protagonista. Sério, dá pra fazer isso tranquilamente.
- Eu não consegui ver essa beleza toda de Artemis. Sinceramente a descrição da cidade não me encheu os olhos, não me impressionou, a tentativa de apresentá-la como um lugar tããão interessante não alcançou o alvo do meu coraçãozinho de leitora. Os cartéis queriam tomar Artemis? E daí? entrega logo essa cidade sem graça!
- O nosso velho conhecido "Jeito estadunidense de ler o mundo como uma caixinha racial ESTEREOTIPADA". Eu admito que isso não é exclusividade dos USians, mas eles são experts nisso não é mesmo? Vamos lá:
1. Jazz é natural da Arábia Saudita portanto, asiática. Mas ela usa termos para se referir a outros asiáticos, como por exemplo os chineses, que eu só li em livros de autores dos EUA, que têm preguiça de se atualizar sobre qualquer parte do mundo que não seja os EUA: "era um senhor ***asiático***". Sim, dá pra entender que era um senhor do leste asiático, pois ele estava em um hotel administrado por chineses e que era frequentado majoritariamente por leste-asiáticos. Mas, caramba! Custa descrever as características físicas da pessoa? "parecia asiático" é o cumulo da descrição medíocre, preguiçosa e ofensiva.
2. E já que estamos falando disso: "senhor asiático", "uma mulher de 50 anos de aparência LATINA", "um homem LATINO", "um assassino LATINO"....um tremendo show de horrores das descrições raciais dignas dos EUA.
3. O amigo ensinando para ela hábitos relacionados ao islã - religião onde ela foi criada - que ela desconhecia pois..."não estava prestando atenção nas lições do pai além de não praticar mais a religião". Gente, não. Ele poderia usar qualquer outro argumento para justificar aquela situação do reconhecimento pela câmera de vídeo, como por exemplo, algum "tique nervoso" específico dela e não comum em outras pessoas. Mas não. Vamos de Jazz sendo ensinada sobre islã - repito, a religião onde ela foi criada - pelo amigo (?!) pois ela desaprendeu tudo ao se tornar não-praticante. Cadê o bom senso???
4. Nacionalidades e/ou grupos étnicos-raciais que trabalham única e exclusivamente com profissões específicas e até ramos de serviços. Ou seja, saíram da Terra pra viver na Lua a mesma situação que vivem como imigrantes em países do Norte Global. Que preguiça desse homem! até pra imaginar as dinâmicas em sociedade de uma cidade na Lua que seria, teoricamente, uma alternativa às hierarquias terráqueas, ele me vem com essa.
- Eu não sei se consigo falar sobre os brasileiros, de tanta raiva misturada com incredulidade, pois esse livro foi lançado em 2017 e não 1937. Aliás, não só brasileiros, mas brasileiros amazonenses, meus vizinhos aqui do lado (sou do Pará). Uma coisa é "Fulana SancheZ, brasileira, nascida e criada na periferia de Manaus, um dos pais - ou ambos - imigrante de outro país sulamericano, que acabou entrando para o tráfico de drogas na tentativa de sobreviver à miséria, já que o PCC se infiltrou no garimpo ilegal e alicia moradores tanto do interior como da periferia da capital. Outra coisa é Fulana SancheZ, chefe de um Beltrano AlvareZ e Ciclano MendeZ....todos eles brazucas e amazonenses com esse monte de "Z" em final de sobrenomes que deveriam ser ibérico-portugueses. Eu quase esperei que ela dissesse "Fulana SancheZ, nascida em Buenos Aires, Brasil", mas aí seria muita mancada da edição. Que preguiça desse homem, que preguiça de quem editou esse livro!
Aliás, se alguém tem dúvidas: não, a região Norte do Brasil não teve uma presença histórica e numerosa de espanhóis que justifique tanto sobrenome espanhol. O único grupo europeu de maior presença aqui sempre foi o dos portugueses. Depois deles: japoneses, sírios e libaneses, todas imigrações - no mínimo - centenárias. Portanto é mais fácil encontrar brasileiros nortistas que possam ter sobrenomes como Fulana Oliveira, Beltrano Hirakawa e Ciclano Kzam do que SancheZZZ, AlvareZZZ, MendeZZZZZZ (esse último se fosse grafado com 'S' até que vai) a não ser que sejam filhos de imigração sulamericana recente (há necessidade de contexto).
Cada vez mais tentada a não ler aquelas sugestões ganhadoras de categoria no Goodreads, cada bomba!