spoiler visualizarvicenzocs 05/11/2023
Retrato falado da política brasileira
A primeira versão de "O Bem-Amado" data de 1962. Se essa informação inicial não causar nenhum choque ao leitor, a crítica de Dias Gomes mostra-se mais atual ainda. O Bem-Amado é um retrato fidedigno e cirúrgico da figura do político brasileiro (quiçá latino-americano), demagogo por natureza e verborrágico ao extremo. Chega a ser estranho pensar que Odorico Paraguaçu é um personagem ficcional, eu podia jurar que conheço alguns bons outros exatamente iguais a ele...
Toda a construção da peça é muito bem pensada. Cada desventura vivida por Odorico e seus correligionários é um ponto de virada que entretém, surpreende e faz o leitor pensar "e agora? Como ele vai sair dessa?". E não para por aí, porque as respostas a essas perguntas também são realizadas de forma genial.
Eu não posso continuar esse comentário sem falar de como o desfecho se enreda (alerta de spoiler!): a maior sacada de Dias Gomes de todos os tempos foi inaugurar o cemitério com, ninguém mais ninguém menos, do que o próprio idealizador de sua construção. O cemitério, objetivo de vida política de Odorico, o ápice da sua carreira, foi, ao mesmo tempo, sua glória e sua morte (em termos literais).
O que mais assusta é a total ausência de escrúpulos do protagonista (e, agora escrevendo esse comentário, assusta mais perceber que existem pessoas assim de fato). Ele não poupa nenhum dos seus fiéis a sofrerem de alguma forma por consequência de seus atos. Ele usa de tudo e de todos a seu favor, mas os descarta da mesma forma como troca de meia. Está aí, essa é uma boa analogia: para Odorico, as pessoas não passam de peças de roupa que ele usa como o convém, isto é, de acordo com o "dress code" apropriado, e depois as guarda no fundo do armário para uma próxima vez oportuna, sem nem se dar ao luxo de conferir se a peça está amassada ou precisa ser lavada.
Os bordões das personagens e as falas regionais são a mais genuína demonstração do poder da língua portuguesa e, em especial, dos dialetos do português brasileiro. Ler O Bem-Amado é ter a certeza de que ser brasileiro é lutar eternamente contra a corrupção, mas também é possuir dons linguísticos, idiossincrasias únicas e próprias de um povo quente, fervoroso, vivo e, por vezes, atento.
A leitura desvenda-se, em outra face, como um alerta à manipulação das massas e até mesmo dos indivíduos mais chegados. Odorico detém a força e a eloquência para fazer uma lavagem cerebral em todos os que com ele estão (exceto pela imprensa, que, por sinal, tem um papel importantíssimo na história, em medidas igualmente sagazes como nocivas). Odorico convence Dirceu de que sua mulher o trai; utiliza mulheres para mero prazer sexual; convence Dorotéia de que a falta de verbas para a educação é um dos pormenores menos relevantes; inflama o povo ao seu favor quando as coisas não estão nada bem para ele; abusa do poder público e das verbas governamentais; faz com que Zeca Diabo acredite em si à medida que ele próprio o desacredita... são inúmeras camadas, que estão aí para serem desbravadas e destrinchadas pelo leitor.
O Bem-Amado é uma daquelas obras que consagram seu autor como à frente da sua época (e eu ainda acrescentaria a alcunha de um profundo conhecedor do "zeitgeist") e figuram como clássicos atemporais, um "must-read" a todo brasileiro que deseja olhar para seu Brasil pelo espelho e bem de pertinho, a fim de entender por que somos o que somos e encontrar os muitos "finalmentes que justificam os não obstantes".