Rodrigues 03/08/2009
Peter Pan e eu
Meu primeiro contato com Peter Pan não foi através do filme de Disney - como talvez aconteça com a maioria das crianças - mas, sim, pelas mãos da Dona Benta, de Monteiro Lobato. A versão de Lobato, apesar de não ser totalmente fiel ao original, se aproxima muito mais do que a de Disney. Talvez por isso, o livro tenha deixado um gosto ruim na memória da menina de 9 anos que eu era na época. Hoje eu sei que, sem querer, acabei percebendo algo mais do que a superficial história infantil. Para mim, durante muitos anos, Peter Pan, os meninos perdidos e a Terra do Nunca tinham um quê de mórbido.
Peter Pan e Wendy - J. M. Barrie (texto integral). Ilustrações de Michael Foreman. Tradução: Hildegard Feist. Editora: Companhia das Letrinhas.Somente em 2002, meu interesse por Peter Pan foi novamente despertado. Primeiro, uma recomendação de Luiz Antônio Aguiar, um professor que eu respeito e um escritor que admiro. Logo depois, li dois livros da Ana Maria Machado que falavam de Peter Pan: "Texturas " e "Como e Por Que Ler os Clássicos Universais desde cedo". Lendo esses livros eu comecei a descobrir o que havia por trás de Peter Pan e a entender o meu incomodo. No final do ano passado (2003), resolvi ler a tradução do texto original feita por Hildegard Feist. Bem, lido o livro, devo dizer que meu incômodo da infância foi explicado: para mim, Peter Pan e os meninos perdidos são o símbolo de crianças abandonadas, não desejadas pelos pais.
Tenho certeza que esta é uma versão (radical, talvez) dentre as muitas que o livro pode suscitar. Fundamentei-a na história do autor (o irmão morto na infância e os pequenos amigos de quem era tutor, já adulto) mas, principalmente, na sensação de melancolia e de impalpável que o personagem de Peter Pan me transmite.
Saindo agora de quem é ou não Peter, me dedico a uma elegia a J. M. Barrie. Há muito não me deparava com um autor tão brilhante! Ele navega com total segurança ao longo do texto, inserindo recursos narrativos deliciosamente criativos e usando a interferência do narrador com maestria. Além disso, cria uma história maravilhosa, que pode ser lida em camadas que vão desde o mais superficial conto infantil até um drama psicológico de dimensões trágicas. Barrie consegue um admirável equilíbrio entre o denso, o irônico e o lúdico. Para mim, é uma aula de boa literatura.
Mas é também um texto que exige fôlego do leitor que se propõe a ir fundo, pois cansa a alma. Na sua parte mais densa, Peter Pan é um texto difícil que deixa muitas perguntas sem resposta. E essas dúvidas fazem o leitor sofrer: Quem é Peter Pan e por que ele esquece? Quem é o capitão Gancho e por que o autor de forma não tão velada o admira? Wendy é feliz?
Pessoalmente, devo dizer que apenas uma coisa mudou desde a primeira vez que li Peter Pan, aos 9 anos de idade: hoje, posso dizer que é uma grande obra. Mas o livro ainda me incomoda, ainda me entristece, ainda me faz sofrer. Se, quando criança, a história trazia embutido o medo de não ser desejada por meus pais como Peter e a ansiosa vontade de ser adulta de Wendy; hoje, aos 36, traz a tristeza que sinto, como mãe, de ver um menino carente, abandonado, precisando se refugiar na arrogância para não desmoronar e, também, a melancolia de uma Wendy que ainda acha que ser adulto é melhor do que ser criança, mas que hoje sabe, que toda escolha implica em perdas.