Toni 03/11/2020
Mulheres empilhadas [2019]
Patrícia Melo (SP, 1962-)
LeYa, 2019, 288 p.
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Por trás de cada frase de Mulheres empilhadas há um ódio milenar, camadas e camadas acumuladas do mais profundo repúdio às atrocidades feminicidas de um mundo feito por homens p/ homens—onde tudo se justifica em nome da hombridade, onde a palavra do homem tem mais peso, onde a reputação do homem importa mais, onde o poder de destruição deles é proporcional à desculpabilidade de seus atos. Esse ódio não pode ser ignorado: ele é a força criadora de um romance complexo e muito bem executado, que devolve à linhagem dos assassinos de mulheres (e daqueles coniventes) a pilha de corpos que o patriarcado deixa atrás de si: “Algumas de saia, outras nuas, umas sem cabeça, outras sem sapatos, esta magra, aquela velha, esta ricamente vestida, aquela fatiada, esta de Roraima, aquela de Fortaleza, esta casada, aquela solteira, esta de São Paulo, aquela de Ubatuba, esta do Norte, aquela do Sul, esta professora, aquela doméstica, esta branquela, aquela negra, esta negra, aquela negra, esta negra, aquela negra, mais uma negra e outra negra, são muitas, de todas as idades..."
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Organizada em capítulos que vão de A a X (ou seja, o ciclo vicioso não se fecha), a narrativa “principal” de Patrícia Melo é entremeada por trechos enumerados que integram o caderno de “mulheres empilhadas” da narradora, casos reais de esposas, irmãs, filhas, namoradas e vizinhas mortas por homens. Em paralelo, o romance também tratará do genocídio de comunidades indígenas na terra sem lei de Cruzeiro do Sul, no Acre. Nos capítulos marcados pelas letras do alfabeto grego, a narradora sem nome passa por experiências transcendentais com a ajuda do ayahuasca, trechos inesquecíveis de sororidade que enchem o romance de poder transgressor e resiliência. Como vocês já devem imaginar, um livro dificílimo de ler, levei mais de um mês para digerir as 288 páginas, mas não poderia recomendá-lo o bastante. “Quando uma mulher morre”, diz a narradora a certa altura, “sua história deve ser contada e recontada mil vezes". Ao mesmo tempo em que faz isso, Mulheres empilhadas é literatura ensinando BASTA.