Che 22/09/2017
BELEZA E(M) HISTÓRIAS
Poderia ser um tiro no pé minha investida na HQ de quase setecentas páginas do estadunidense Craig Thompson, mais conhecido por sua autobiografia "Retalhos" (a qual ainda não li, mas agora ficou um grande interesse), que comprei na livraria por um valor bem salgado. Felizmente, a obra não só correspondeu às minhas expectativas de ler algo numa estética do tipo "Ramadan" do Neil Gaiman (mesmo sendo uma HQ ocidental), como ainda a superou com folga.
Meu único entrave, principalmente no começo, que no entanto foi diminuindo ao longo dos nove capítulos, foi com as incursões meio 'esotéricas' das histórias contatas pela protagonista Dodola para o filho adotivo. A maioria delas tem inspiração claramente religiosa. Como o islamismo é também uma fé abraamica - a mais recente delas, por sinal - estão ali elementos do cristianismo e do judaísmo, incluído menções diretas a Cristo e a Moisés.
Há inclusive trechos de curiosidade teológica, como o momento no qual se versa as interpretações diferentes para o sacrifício do filho de Abraão - o qual muda em nuances decisivas (e reveladoras) do cristianismo para o islamismo. E há também passagens francamente bem-humoradas, principalmente aquela envolvendo a arca de Noé, na qual me pareceu claramente que o autor não resiste a fazer certas 'trollagens' com uma parábola francamente absurda como aquela.
De todo modo, será uma HQ aproveitável tanto pra quem for ler movido pela curiosidade religiosa, quanto para aqueles que, como meu, são incapazes de fé, sobretudo porque Thompson tem a inteligência de usar as metáforas místicas/esotéricas/religiosas no âmbito das (muitas) histórias paralelas à narrativa principal, mas nesta ele é mais pé-no-chão e "mundano", com poucas concessões ao misticismo. Até as licenças poéticas mais curiosas nessa trama, como o fato de misturar elementos do passado e do presente, indo de sultões e haréns até grandes metrópoles urbanas típicas do século XX, fazem perfeito sentido dentro daquele universo. Fica, de todo modo, bem evidente que Thompson pesquisou bastante para escrever um roteiro com tantas referências, desfrutáveis e compreensíveis até pra quem conhece pouco ou nada das obras às quais ele recorre (principalmente o Corão).
Mas o que realmente vale a pena em "Habibi" é a narrativa central de Dodola e Cam (ou Zam), mergulhada em várias reviravoltas impressionantes, sendo duas delas particularmente memoráveis e diretamente relacionadas à sexualidade dos personagens, uma envolvendo uma tragédia com Dodola no deserto e outra, em decorrência da primeira, envolvendo uma escolha completamente inesperada do então adolescente Cam, que conduz o enredo para uma seara pra lá de imprevisível. Dizer mais que isso aqui é estragar a surpresa de quem não leu a obra ainda.
Essa aposta arriscadíssima de Thompson podia dar muito errado, na medida em que a partir daquele momento se coloca um teor de inevitável "tragédia anunciada" num amor tornado impossível entre os dois personagens principais, porém graças à condução narrativa brilhante, que leva o leitor a grudar nos capítulos ansioso pela próxima aventura de Cam e Dodola - juntos ou separadamente -, acaba se tornando o ponto mais forte de "Habibi" e inscrevendo seus melhores momentos, justamente aqueles relacionados aos desejos e corpos de seu casal central.
Outra coisa que chama a atenção no roteiro da HQ é que ela foge de noções de moralismo ou de punitivismo dos 'personagens malvados'. E isso desde o começo, quando somos apresentados ao então marido de Dodola, muito mais velho que ela (ainda criança), mas sem ponderações morais do roteiro contra ele, em que pese não fugir de retratá-la como criança assustada e virgem. Não espere, portanto, ler em "Habibi" catarses em desfechos forçosamente felizes de subtramas contra personagens de péssima índole, como o sultão hedonista e entediado que, ironicamente, tanto tem em comum com a nossa burguesia do século XXI.
O escapismo para as mazelas, se é que há, está justamente nas histórias e no poder das palavras de aproximar as pessoas e fazê-las acreditar em outra realidade. Essa beleza da tecedura verbal casa, na obra de Thompson, também com quadros lindamente desenhados por ele mesmo, repletos de detalhes que valem a pena escarafunchar com um olhar atento, antes de passar à próxima página. Até o fato de estar em preto e branco acaba ironicamente ajudando na arte, que é singela e direta ao mesmo tempo em que abre espaço para um deslumbre e um detalhismo suntuosos, de fazer inveja aos jardins riquíssimos do sultão.
Só resta finalizar a resenha recomendando que se busque a obra, infelizmente menos conhecida do que merece. Apesar de ser um retrato mí(s)tico do Oriente Médio, cheio de licenças poéticas (como a já referida mescla de passado e presente), além de ser escrita por um estadunidense, acaba me soando mais instigante culturalmente do que, por exemplo, a autobiografia da iraniana Marjane Satrapi em "Persépolis", infinitamente mais (re)conhecida que "Habibi".