spoiler visualizarAldemir2 28/07/2022
Previsível que nem um episódio do Chaves, mas pelo menos o episódio é bom de assistir
Duas coisas pontuavam na minha mente antes de começar essa leitura: previsível e problemático. Só não sabia que essas duas coisas seriam tão fortes assim. Meu primeiro interesse nesse livro nasceu quando vi um vídeo da Thamires do Resenhando Sonhos falando sobre como esse livro tinha passagens problemáticas e racistas e eu sinto vontade de ler alguns livros assim para poder analisar essas passagens e juntamente analisar a sociedade da época em que o livro foi escrito, o autor e alguns dos pensamentos que rondavam a mente das pessoas na época. Fiz a mesma coisa *O Presidente Negro*, de Monteiro Lobato, e foi uma exercício interessante de fazer, ao mesmo tempo que incômodo pelas suas passagens que dão vontade de revirar o estômago.
*Coração Satânico*, lançado em 1978, é um thriller sobrenatural protagonizado pelo detetive particular Harry Angel, contratado por Louis Cyphre para procurar por um antigo cantor que sumiu após voltar da Segunda Guerra Mundial, Johnny Favorite. Ao longo do romance descobrimos mais acerca do passado sombrio e cheio de mistérios de Favorite e também um pouco do passado nebuloso do protagonista que irá caminhar por vários lugares e entrar em contato com muita gente esquisita. Indo para o primeiro tópico, a previsibilidade, na época em que o livro foi lançado talvez o final tenha sido um grande baque para os leitores, mas por experiência própria e vendo as de outros leitores é claro como o plot twist no final é extremamente previsível, sendo possível desvendar tudo já nos primeiros capítulos. Primeiro, quando o número 666 fica em evidência e um pentagrama aparece já de início, isso tudo ligado com um personagem sombriamente classudo, já se percebe que o próprio Lúcifer em pessoa está no meio daquela história. Mas fingimos surpresa quando ele se revela no final para o protagonista. Além disso, o autor deixa muito claro que Johnny e Harry são a mesma pessoa, as partes nebulosas do passado do detetive que *coincidentemente* também são nebulosas no passado do cantor só explicita mais ainda e, para um detetive que supostamente tem boas referências, é muita burrice Harry nem pensar “Poxa, que engraçado né, nós dois estávamos no mesmo lugar ao mesmo tempo”. Mas afinal, por que esse livro deixou de ser chocante para ser previsível? Porque esse plot twist já foi tão usado que está batido? Porque é uma narrativa muito previsível, mesmo para quem não leu o livro? Ou sempre foi previsível de fato? É complicado responder essa pergunta, mas que é fácil de adivinhar as respostas há de início isso é fato.
Agora, partindo para as parte problemáticas, muito me remeteu ao caso de Lobato: alguns dizem que para o contexto da época era ok, mas as passagens são racistas até para a época (pontuando que a história se passa no ano de 1955), ainda mais sendo escrito por um homem branco. Não só há passagens racistas para a população negra em si (em certo momento um policial usa palavras que eu nem vou reproduzir aqui e na hora me fizeram questionar se eram realmente necessárias para a narrativa), mas também para as religiões de matrizes africanas, sendo o voodoo muito evidente nesse livro, abordadas de maneira extremamente preconceituosa. Outros dois pontos é a relação de um homem na casa dos trinta anos com uma jovem de dezessete, que eu não entendo como às vezes as pessoas deixam esse ponto de lado quando ele não é subentendido, mas sim claramente explícito quando a própria personagem fala a idade dela, e a objetificação do corpo feminino e mais ainda do corpo feminino negro. A história é uma narrativa noir, detetivesca com alguém que claramente não é completamente certinho como outros heróis, então há aquele ar de o personagem principal ser um cara alfa que pega todas, mas é tão chato ver ele desejando cada mulher com quem ele fala e é nojento ainda ver os pensamentos dele enquanto isso, como na seguinte passagem: “Ela era um pedaço de mau caminho, como se diz por aí, e foi fácil imaginar a mim mesmo me perdendo no meio daquelas carnes morenas”, ele pensa isso de uma personagem que no momento ele não tinha vínculo nenhum, nem mesmo de amizade, e que na hora estava assustada e frágil. O cara é um nojento, mas ainda sou obrigado a ver ele como o grande herói da história.
Tirando todos os defeitos, até que é um livro bonzinho ainda, não foi de todo ruim. De início foi uma leitura bem fluída, o autor sabe criar cenas de ação bem dinâmicas, uma ambientação legal, além de reproduzir o que estava acontecendo no mundo naquele momento. Mas é isso, ele soube escrever bem, mas não escreveu um bom livro.
Em 1987 ele ganhou uma adaptação para o cinema, com o nome de *Angel Heart* (no Brasil ele manteve o mesmo nome da tradução do livro, o nome original do romance é *Falling Angel*, que diga-se de passagem, é mais condizente com a história e de certa forma tem o mesmo efeito spoiler do título traduzido), faz algumas alterações em relação ao livro, principalmente cortes de várias cenas que estão no livro como uma missa negra e o que acontece após ela que é um dos pontos altos da história, no entanto achei o protagonista mais bem apresentado no filme do que no próprio livro onde ele me parecia meio apático. Há ainda as partes problemáticas, especialmente a relação de um cara bem mais velho com uma menor de idade, mas pelo menos não tive que ver os pensamentos dele de novo. Ele vai num ritmo mais rápido que o livro, que pra mim começou a enrolar um pouco na segunda metade, e acho que vale a pena assistir, é bem produzido ainda assim além de ser um clássico com Robert De Niro.
A gente se perde tanto lendo livros mais atuais que sabem como lidar com problemáticas da sociedade, muitas vezes escritos por pessoas que estão no lugar de fala, que às vezes nos esquecemos que existem livro problemáticos, sejam antigos ou não. Mas qual a solução para esse tipo de livro? Boicote? Crucificar o autor? Impedir a republicação ou cortar as partes problemáticas? Alguns livros nunca deixarão de ser clássicos ou serão cortados da lista de “Os mais importantes livros xxxx”, mas é importante ter em mente quais são os problemas daquele livro quando for ler ele e a editora poderia trazer um texto de apoio em que explique o contexto da época, do autor e dessas passagens. Infelizmente não há isso nessa edição da DarkSide de *Coração Satânico*, pelo contrário, há uma exaltação do autor até mesmo com uma carta de Stephen King elogiando o livro, mas fica a dica para uma possível futura edição. Essa dica se aplica com certeza a outros livros na mesma situação, como alguns de Philip K. Dick.