CG! 15/01/2024
Perguntas sem respostas
Ao criar o homem, Deus teria imaginado que seu próprio fruto fosse a raiz da sua idolatria. Ao criar o homem, Deus, porém, não parece ter imaginado, do alto de sua onisciência, que o homem também seria o maior indagador de sua existência.
Em Legião, proposto como a continuação de O Exorcista, W. Friedkin (1935-2023) suscita os mistérios sobre Deus e sua criação em meio à uma aura de apreensão, em um ambiente noir aliado à crueza de uma literatura de horror genuína.
Em primeiro plano, as atividades de um policial obcecado por seus casos, que passa a reproduzir para si mesmo a pergunta que talvez todos nós já tenhamos feito no íntimo mais profundo de nossa religiosidade ou da ausência dela: se Deus está ai, e é tão carregado de bondade, porque o homem é envolto em tanto mal?
Nesse cenário, W. Friedkin mistura as sensações de dúvida em trechos crus e aterradores, sem espaço para pudores, e traz à tona a forma do horror moderno em seu modelo mais louvável. O elemento sobrenatural e seus demônios se conjugam aos questionamentos sobre Deus, sobre a capacidade humana de autocompreensão, e sobre os limites da percepção e da sanidade. Tudo é carregado de uma grande interrogação em meio à trilha que soa quase como um roteiro de cinema.
Em uma narrativa que não apenas produz curiosidade - afinal, se trata também de um romance policial -o autor consegue introjetar sentimentos que vão além da história contada: abrem-se entrelinhas invisíveis em uma habilidade rara de silenciosamente incomodar o leitor.
Enquanto ficção, a narrativa segue os passos do detetive Kinderman na descoberta sobre a origem das mortes objeto de sua investigação, sem nunca soltar o aperto firme na mão que segura o livro, sobre a pergunta do porquê Deus aparentemente abandonou o homem.
Desconsideradas as influências até hoje experimentadas pela adaptação de O Exorcista para o cinema (1973) - talvez o filme de horror nunca superado e jamais esquecido - Legião parece ser um incomum caso em que uma sequência supera sua base original.
Trata-se de um romance de terror-policial peculiar, que merece a mesma atenção que sua capa, estampada com o rosto provocativo de um demônio vermelho e que convida a uma resposta: afinal, porque estamos cercados pelo mal?