Queria Estar Lendo 03/10/2018
Resenha: Menina Boa Menina Má
Menina Boa Menina Má é o livro de estreia de Ali Land, lançado por aqui pelo Grupo Editorial Record - que cedeu uma cópia para resenha - e traz a história de Milly, uma garota criada por uma serial killer que precisa descobrir se a criação irá se sobrepor a natureza. Um suspense pela mente de uma adolescente abusada, negligenciada e desesperadamente em busca de ser diferente da mãe.
Annie - ou melhor, Milly, agora que está sob a proteção do estado - é uma adolescente de quinze anos que presenciou a mãe assassinar nove crianças ao longo dos anos. Um dia, meses antes do seu aniversário de 16 anos, ela entra na delegacia e denuncia os crimes da mãe.
Agora, como testemunha chave no julgamento da mãe, ela é colocada aos cuidados de Mike, um psicólogo que comumente oferece um lar temporário para crianças adotivas. É ele, também , que irá ajudá-la a lidar com o trauma dos abusos que sofreu por parte da mãe desde a infância. Além de Mike, ela também precisa conviver com Saskia, a esposa ausente e Phoebe, a filha adolescente que não gosta nem um pouco de dividir a atenção do pai com uma estranha.
"Conto até chorar, e de novo até parar, e sei que é errado, mas no meio de tantos números eu começo a sentir a sua falta."
Logo no início eu já percebi que Menina Boa Menina Má não seria, necessariamente, um livro chocante ou cheio de plot twists, mas uma leitura introspectiva da psique de uma criança abusada cotidianamente, com um senso deturpado de certo e errado, do significado do amor e do valor que tem de si mesma. Além de uma leitura que questiona o poder do ambiente sobre a natureza, o quanto o desejo e uma pessoa de ser boa pode ser sobrepujado pelo ambiente hostil e abusivo no qual foi criada.
Ali Land conseguiu desenvolver uma história coerente, com ritmo e o suficiente de suspense para nos manter interessados em virar as páginas. Milly foi uma personagem intrigante e completa, mesmo na sua reação as pessoas a sua volta. A forma como, a principio, ela demonstra uma atitude completamente misógina para com Saskia reflete muito da criação que ela teve com a mãe, que demonstrava um completo descaso e até nojo e raiva de garotas, até a forma como ela precisava se lembrar constantemente de ter uma reação emocional ao que acontecia, que fosse considerado "normal".
Honestamente, com Mike eu fiquei construindo diversas teorias uma mais absurda que a outra, que não chegaram a se concretizar. Não consegui realmente gostar dele, o personagem foi bem montado e desenvolvido, mas não gostei dele como pessoa. Era como se desse para sentir as segundas intenções dele e a forma forçada como ele tentava desenvolver o relacionamento com a Milly. Já a Saskia começou indiferente, mas quanto mais ela era revelada, mais eu conseguia sentir empatia por ela, mais eu achava que ela era a personagem mais normal do livro.
"Beleza dá poder a uma pessoa. E camuflagem."
Já com a Phoebe eu só passei raiva, na maior parte do tempo. A atitude dela é completamente compreensível, assistindo ao longo dos anos o pai acolher essas outras crianças que estavam sempre em uma situação muito ruim e por isso precisavam de mais atenção que ela, e como isso moldou a forma cruel como ela tratou Milly - e possivelmente várias outras crianças antes. O bullying descomunal que ela e as amigas praticam com a Milly chega a ser crime e, embora o final não tenha sido exatamente o que eu queria, satisfez parte do que eu desejava.
Mas preciso dizer que uma das coisas que eu mais gostei em Menina Boa Menina Má foi a forma como a Ali Land lidou com a violência. Os crimes da mãe de Milly foram extremamente violentes, e a forma como ela escolheu abordar eles, de forma que nós soubéssemos o que aconteceu, mas sem ser explícita, foi uma das minhas coisas preferidas. Crimes contra crianças são repugnantes, e ela encontrou uma boa saída.
Vi algumas pessoas comentarem que não curtiram muito o livro porque queriam ler os detalhes dos crimes da mãe da Milly, queriam saber exatamente o que aconteceu com ela. Honestamente, eu acho isso meio mórbido e nojento. A gente já sabe o que a mãe dela fez: matou crianças. Abusou física, psicológica e emocionalmente da filha por anos. Não preciso desses detalhes ou dos detalhes do que ela fez com a Milly, porque em nenhum momento existe uma dúvida sobre o que aconteceu.
"Indulgente, ela é, e solitária. Uma pessoa é capaz de perdoar um montão de coisas se precisa de companhia."
Acredito que o que muita gente não percebeu é que Menina Boa Menina Má não é sobre os crimes que a mãe da Milly cometeu, é sobre as consequências. É sobre as marcas que ficaram na Milly, por ter sido criada por uma serial killer - muito provavelmente uma psicopata. É sobre as dúvidas que ela tem de si mesma, se vai se tornar a mãe ou se pode lutar contra aquilo, é sobre os problemas de interação social, de empatia, de confiança que ela desenvolveu por causa da mãe.
É uma história sobre Milly, e através dos olhos dela, das reações dela a uma vida "normal", das lembranças, a gente vai tendo uma boa ideia do que aconteceu com ela. Com as crianças. Então eu acho que a parte macabra, os detalhes nojentos e de revirar o estômago não eram, de fato, necessários nesse livro - inclusive, acredito que se tivessem sido usados, seria apenas uma forma de transformar violência gratuita em espetáculo.
E, de toda forma, a falta dele não torna o livro menos pesado, não torna as coisas mais fáceis de serem digeridas. Acho, ainda, que torna tudo pior. É aquela coisa de que o que não é realmente mostrado é pior, porque a gente imagina o complemento de mil formas terríveis.
"Você é a cara da sua mãe, costumavam me dizer no abrigo de mulheres onde você trabalhava. É disso que eu tenho medo, respondia para mim mesma."
Também quero deixar aqui um adendo sobre o projeto gráfico do livro, que as fotos não conseguem fazer jus, por mais que a gente tente. O projeto ficou lindo, com o título em alto relevo e glitter e a laminação dourada, além dos diversos "respingos de sangue" que tem duplo significado aqui: tanto o sangue que a mãe de Milly derramou como o sangue que elas compartilham e que, talvez, tenha passado a maldade para a Milly também.
No fim das contas, Menina Boa Menina Má é um bom suspense, especialmente para um livro de estreia, com uma história original sobre a psique humana, as consequências do abuso e a luta interna que travamos para nos tornar a pessoa que queremos ser. Acredito que ele é um livro que vai agradar tanto os amantes de suspense como aqueles pouco acostumados com o gênero.
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