Manoel 15/04/2020
O LIVRO-ENIGMA
Eu não sou muito de tecer resenhas aqui, até porque gosto da presencialidade de uma discussão acalorada, mas, para minha própria surpresa, sou consumido por raiva enquanto digito, às 1h da manhã. Vi, li e ouvi a obra de Rachel Cusk ser aclamada em diversas instantes como um novo movimento literário ou, até mesmo, uma revolução. Fui fisgado. Li o livro e minha primeira impressão, minha primeira sensação, foi: nada. Sou Meursault atravessando incólume o funeral da mãe.
Sou formado em letras, o que para muitos não significaria nada, o que para mim alterou, por completo, meu modo de ler e enxergar um livro. A premissa da obra de Cusk, admito, pode sim, ser chamada de revolucionaria: aqui, temos uma mulher, professora de escrita criativa, viajando até Grécia por causa do trabalho. Lá, em cada um dos capítulos (na verdade, começando no percurso, com o vizinho no avião), ela absorve a história das pessoas que encontra. Alunos, amigos, novos amigos, etc. A obra inteira é ela ouvindo a história de vida dos outros.
Nós viemos de uma tradição literária, especialmente no ocidente, autocentrada. O personagem principal sempre foi o elemento mais importante num livro; para alguns, mais importante até do que a narrativa (entende-se narrativa por o jeito, O COMO, que a história é contada, narrada). Cusk efetua, aqui, uma mudança extrema. A personagem principal, a pessoa que deveria nos guiar naquele mundo, passa o livro inteiro escutando os outros; ela vive à meia luz. Isso é uma alteração tremenda para quem, como eu, estuda, constrói sua vida, ao redor da literatura.
Contudo, meu problema com o livro é justamente sua narrativa, o desenvolvimento, o modo com que esse ''Como'' acontece. It feels flat.
A obra, possui, algumas passagens comoventes por sua transparência e vulnerabilidade. Diálogos lindos, límpidos, argutos. Porém, nada nele ficou comigo. Eu não pensei nesse livro em momento algum fora da leitura. Ao contrário da conha na capa, em meus ouvidos, a obra não reverberou.
Meu incômodo com clamar essa produção como uma revolução é que demonstra um desanimo, uma apatia e, até mesmo, cinismo, com o cenário da literatura contemporânea. Numa indústria, e hoje sabemos que se trata de uma indústria, saturada com 50 tons de livros razoáveis, é compreensível ficar animado com Cusk. Mas, por outro lado, essa animação demonstra a subsistência do elitismo sobre o que é considerado ''revolucionário'' ou ''canônico''; tratando-se de um ato perigoso, conservado e continuado (leia-se protegido) pela academia literária e as revistas de grande prestígio.
Particularmente, não tenho nada contra esses termos e rótulos. Não mesmo. Hemingway, de quem não sou fã, mudou a literatura. Não tenho problema algum em admitir isso. Veja o modo que seus contemporâneos, e os escritores antes dele, escreviam. E perceba como, até hoje, o estilo de Hemingway reverbera, especialmente nos workshops e cursos de escrita criativa. Flaubert, de quem sou fã, é outro escritor revolucionário.
A palavra ''revolução'' designa um ato contrário a algum poder estabelecido, e de quem as consequências podemos sentir até hoje em diversas formas, em diversos lugares.
Rachel Cusk escreveu um bom livro (apesar de ''bom'' ser tão subjetivo e seletivo quanto ''ruim). Ela é, na minha opinião, uma boa escritora. Entretanto, apenas o tempo irá dizer se ambos são revolucionários ou não.