Paulo 09/08/2018
"Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado."
A mais famosa obra de George Orwell, 1984, nos apresenta um hipotético futuro onde as pessoas vivem sob a tutela de um regime totalitarista disfarçado de democracia, desde que o “Partido” chegou ao poder sob o comando do onipresente Grande Irmão (Big Brother). No mundo de 1984, as pessoas são controladas pela dor.
Inspirado na opressão dos regimes totalitários das décadas de 30 e 40, 1984 vai muito além de apenas criticar o regime comunista russo (como muita gente crê, de maneira simplista), sendo uma poderosa história sobre o poder, a nivelação da sociedade, a vigilância constante do Estado, e a redução do indivíduo a uma simples peça que existe apenas para servir ao estado ou ao mercado, através do controle total. Portanto, não, 1984 não é uma distopia crítica ao socialismo, como eu inclusive já cheguei a pensar. A obra transcende qualquer tipo de discussão sobre tendências políticas, sendo um ataque direto aos regimes totalitaristas e autoritários, sejam de esquerda ou de direita. 1984 é uma crítica ao abuso de poder e a privação de nossa liberdade, e um relato sobre como a tortura é a maneira mais eficaz de se quebrar a “alma” do ser humano e dobrá-lo a qualquer desígnio, constituindo-se como o mais perverso instrumento de morte já desenvolvido pela mente humana.
O livro nos conta a história de Winston Smith, membro do partido externo. Funcionário do Ministério da Verdade, sua função é reescrever e alterar dados históricos de acordo com o interesse do Partido. Winston e todos os cidadãos sabem que qualquer atitude suspeita pode significar o seu fim. Os vizinhos e os próprios filhos eram incentivados pelo Governo a denunciar à Polícia do Pensamento quem se desviasse dos princípios do Partido. Mas algo estava errado, e Winston sabia disso. Não sabia como e nem o porquê, mas sentia que havia algo de errado.
Narrado em terceira pessoa, Winston é o fio-condutor de toda a trama, e através de seus olhos iremos conhecer a Inglaterra do ano de 1984, segundo as visões de Orwell. Dividido em 3 Atos: no primeiro, somos apresentados ao protagonista, e conhecemos um pouco sobre ele, sobre como é a sua rotina, sobre como ele enxerga a sociedade em que vive, e sobre como ele sem querer começa a agir de uma forma diferente do que ela espera dele, e a transgredir o sistema. No segundo ato, Winston conhece uma mulher que também tem comportamentos transgressores e começa a se relacionar com ela. Juntos, eles vão cometendo pequenas transgressões, e terão o primeiro contato com o suposto grupo rebelde “A Confraria”. É a parte em que menos coisas acontecem, mas a que em mais nos aprofundamos no funcionamento deste universo. Por fim, durante o terceiro e último ato, iremos acompanhar as consequências desse relacionamento e das ações dos protagonistas: afinal, eles conseguirão derrubar o sistema ou serão derrubados por ele?
Quanto a condução da narrativa e aos personagens: Winston pode não ser o mais carismático dos protagonistas, mas ao longo da história começamos a nos importar com ele, e o temor de que ele seja pego por suas transgressões nos move freneticamente de capítulo a capítulo, e em momento algum sabemos aonde a trama vai chegar. Mesmo as partes mais descritivas, no qual somos introduzidos a conceitos mais teóricos sobre o funcionamento deste mundo, são muito bem escritas, em momento algum se tornando maçantes ou cansativas. A escrita do autor se mantém agradável e fluida mesmo tanto tempo depois de sua publicação original, e acredito que, diferente de outros clássicos do gênero, como Admirável Mundo Novo, cuja narrativa é mais densa, descritiva e cansativa, esta obra pode ser lida até por leitores mais jovens, sem vício algum. Terminei minha leitura relativamente rápido, e sem nenhum tipo de ressaca literária pela densidade do livro.
Enfim, a obra-prima de Orwell continua atual, mais de 50 anos após sua publicação, o que é de certa forma assustador. Em época de Fake News, o conceito de dupli-pensar (defender ao mesmo tempo duas opiniões que se anulam uma à outra) talvez um dos mais interessantes dos criados pelo autor, está mais atual que nunca. Além disso, vivemos hoje em dia cercados pelo medo da volta de regimes autoritários, e esse livro deveria ser leitura obrigatória em escolas para a formação do pensamento crítico dos jovens e das crianças. Talvez assim, não precisássemos ouvir o clamor pela volta de regimes autoritários, principalmente por pessoas que nunca viveram o que Winston passou.
PS: Apesar de classificarmos 1984 como uma distopia, quase tudo que acontece nessa obra aconteceu/está acontecendo, em maior ou menos escala, em países dominados por regimes autoritários. Muitas das situações bizarras criadas por Orwell está acontecendo, nesse momento, na Coréia do Norte.