Kenia 02/04/2021"Se acostumar é não conseguir mais diferenciar as tragédias dos dias normais."
Cidades afundam em dias normais é um livro em um formato muito interessante: se imagine em um museu e que nele há duas galerias: a galeria Seca e a galeria Água. A visita à galeria Seca te mostra as ruínas da cidade de Alto do Oeste, que ficou submersa por 16 anos e misteriosamente reaparece assim como seus ex-moradores. Um deles é Kênia Lopes, fotógrafa, que junto com seu amigo argentino, Facundo, retorna à cidade para fazer um registro fotográfico e entrevistar as pessoas no intuito de entender o motivo que os fizeram retornar à cidade e resgatar suas memórias de quando a cidade foi afundando em dias normais.
"Se Alto do Oeste afundou, foi para que a gente pudesse contar histórias de esperança."
Quando visitamos a galeria Água, mergulhamos nas memórias desses ex- moradores. Tem o a própria Kênia, que não revela muito da sua ligação com a cidade; a incrível professora de história Érica, que segundo as lendas, é mais velha que a própria cidade; do grafiteiro Tiago; e da adolescente Tainara que é dona, na minha opinião, das cenas mais saudosistas do livro, pois enquanto escreve suas memórias para o trabalho de história, acompanhamos uma adolescência cheia de descobertas regada a muita música, filmes e seriados dos anos 90, 2000. Com alma brasiliense, a mineira Aline faz, sem exagero, algumas referências a esses anos especiais pra mim, e me aqueceu o coração quando menciona artistas que eu escutava na época como Só pra Contrariar, Claudinho e Buchecha e até o DJ Jamaika! Além disso, alguns detalhes que remetem à Brasília, como o nome de uma escola conhecida na região da Asa Norte, que é o CEAN, e o transporte da cidade, o Grande Circular, nos transporta para uma realidade que é minha, como moradora de Brasília.
"Para Kênia, que chegou ali com o mesmo peso de uma caixa de papelão, aquela era só mais uma aventura. Ela não tinha como saber que passaria tantos anos de sua vida naquela cidade. Não sabia também que chegava ao mesmo lugar onde um dia estaria sentada no chão, suas fotografias espalhadas como um baralho aberto, de repente entendendo que aquelas imagens só faziam sentido quando fora de ordem."
Eu gostei muito de como a Aline contou essa história e deu bastante importância a questão da memória. Ela nos leva a refletir sobre como somos influenciados pelo meio em que vivemos. Alto do Oeste é uma cidade esquecida; então nesse ambiente, as coisas acontecem, as relações se solidificam e se quebram em seguida; e para os moradores está tudo bem. Mas quando a cidade ressurge, o que aconteceu no passado vem junto com ela, e com isso, a urgência de não repeti-lo.
Esse foi meu primeiro contato com a escrita da Aline e me conforta muito saber que temos ótimos escritores contemporâneos. Nunca é tarde para conhecer os novos talentos da nossa literatura.
Esse livro me conquistou e só me incomodou não ter mais páginas! Me envolvi muito com os registros da minha xará pelo cerrado que fiquei com gostinho de quero mais.
Se você, como a Kênia, precisa de mais respostas sobre esse apocalipse no Centro-Oeste, recomendo muito o mergulho na leitura de Cidades afundam em dias normais. É uma leitura muito envolvente!