Renata 26/02/2023
Este é um livro em que é importante saber um pouco do contexto em que foi escrito. Quando publicado, em 1929, a lei de segregação racial estava em pleno vigor, e assim continuaria até 1964. Tratava-se do racismo instituído, a proibição de que pessoas tivessem acesso a lugares, serviços e fundamentalmente, a direitos, em razão de sua ascendência negra.
Além disso, para que possamos entender as tensões pelas quais passam as personagens, é preciso saber que a identificação racial nos EUA funciona de modo diverso ao que vivenciamos no Brasil. Aqui o racismo vai incidir predominantemente sobre traços fenotípicos, se agravando em uma escala que acompanha a pigmentação da pele. O que os personagens de Identidade revelam é que, na sociedade em que estavam inseridos, as marcas e traços que revelam ancestralidade negra não eram os únicos objetos de preconceito, mas a própria origem. Um racismo mais completo por assim dizer, que abarca genótipo e fenótipo.
No texto de Larsen, Irene e Clare, são duas mulheres negras de pele clara crescendo nos EUA de início só século XX e que por circunstâncias da vida perdem o contato ainda em sua juventude. Após 12 anos elas se reencontram e o que vemos vai além das diferenças trazidas naturalmente pelo tempo e pelas escolhas, o encontro revela uma diferença impensável, algo que a princípio as uniria indubitavelmente, mas que agora causa um estranhamento entre elas, Clare não mais se apresenta socialmente como uma mulher negra.
O que é mais problemático ainda na medida em Irene gasta boa parte de sua energia na promoção da população negra, estando especialmente ciente dos impactos do racismo a que estavam submetidos.
Interessante notar que Irene também poderia se passar por uma mulher branca, e ela o faz na medida em que isso lhe facilitava o acesso e a paz em alguns lugares, diferente de Clare, que construiu sua vida, seu casamento e toda rede social sobre o engano de ser uma mulher branca, tendo que viver na corda bamba de um possível descobrimento de sua fraude. Isso é por ela mencionado quando relata a ocasião de sua gravidez e o medo que sentia por saber da possibilidade de nascer uma criança negra. Esta é uma passagem na qual vemos a perspectiva da miscigenação como uma loteria, em que seria possível “ser abençoado” com o nascimento de uma criança branca, contudo também seria possível que nascesse uma criança retinta e como expressa Gertrude, amiga de Irene e Clare e como elas negra de pele clara: ‘ninguém quer uma criança escura’.
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Embora a ideia de promover esse engano possa parecer reprovável, é interessante notar que a narrativa deixa claro a repercussão das oportunidades e estrutura familiar de cada uma. Se Irene conseguiu atingir um determinado patamar social por vias “legítimas” não se trata somente de mérito próprio. À Clare foi negado esse acolhimento e cuidado , colocando-a em posição de lutar com o que tivesse em mãos.
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Outro ponto interessante é a menção ao Brasil. O marido de Irene sonhava em se mudar para o Brasil, dado a perspectiva que tinha de ser um lugar em que se veria livre do tormento do racismo. O que não é de surpreender, visto que por muito tempo fomos considerados território de um vasto experimento social, com a miscigenação sendo característica de nossa população. Não atoa Stefan Zweig ainda iria publicar, dez anos mais tarde, o famoso Brasil: país do futuro, justamente após fugir da Europa no momento em que está ruía diante das políticas racistas do nazismo.
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Irene e Clare divergem em suas personalidades e caráter. Irene busca a estabilidade e controle e é assombrada com os possíveis acontecimentos que desestruturariam a vida que tanto trabalho teve para construir. Já Clare tem um viés um tanto vida loca e autodestrutivo. Para além dos imperativos que a fizeram se passar por uma mulher branca, ela não demonstra apego seja ao marido, à filha ou à própria vida, ela mesma expressando que se fosse preciso passaria por cima de qualquer um e de qualquer coisa para ter o que queria.
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Irene quer desesperadoramente estar inserida socialmente, fazendo tudo corretamente, se abstendo e fazendo seu marido se abster de seus desejos. Algumas intrusões a exasperam, tiram seu equilíbrio e sua reação é evitar a todo custo. Exemplo disso é a discussão a respeito de conscientizar ou não as crianças sobre o racismo a que estariam submetidos naquela sociedade. Tanto quanto é possível Irene irá manter os filhos na ignorância, criando uma atmosfera de perfeição e erro.
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Nesse sentido, quando Clare resolve se reaproximar de ‘sua gente', coloca em risco não somente a si, mas principalmente Irene, que tem sua paz arrancada, tanto mais que ela se coloca sempre na posição de manter o que considerava lealdade racial, não conseguindo com isso dar fim ao que lhe atormentava.
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Irene e Clare são duas mulheres negras que lutam com o que têm, a primeira buscando um ideal de controle que provavelmente associava a uma segurança, diante de um monto caótico e especialmente cruel com pessoas que ocupavam o seu lugar social. Nesse sentido Clare estava no polo oposto, jogando com o perigo, ciente e destemida em relação às mudanças e quebras em sua vida. Ambas admiráveis.