Diego Rodrigues 12/12/2022
Muitas camadas (racismo, identidade, sexualidade, machismo, etc)
Nascida em 1891, em Chicago, Nella Larsen foi umas das principais escritoras do movimento que ficou conhecido como Renascimento do Harlem. Além de contos, publicou dois romances: "Quicksand" e "De Passagem". Recebeu a cobiçada bolsa Guggenheim e também foi condecorada com o prêmio William E. Harmon, destinado a trabalhos notáveis de pessoas negras. Infelizmente, parou de escrever na década de 30 devido a um conturbado divórcio seguido de severas crises de depressão. Atuou como enfermeira até a sua morte, em 1964. A "redescoberta" de seus escritos, na segunda metade do século XX, reforçou seu nome como um dos expoentes do modernismo, além, é claro, de reacender a importância de temas como identidade sexual e racial na literatura.
Clássico da Renascença do Harlem, "De Passagem" foi publicado originalmente em 1929. O romance narra o reencontro de duas amigas de infância, Irene e Clare, duas mulheres de origem negra em um EUA sob as rigorosas Leis de Jim Crow, isto é, a segregação racial. Para driblar o preconceito e poder ter acesso a lugares restritos, elas "se passam" por brancas, cada uma à sua maneira. Enquanto conversam tranquilamente e tomam chá em um hotel (onde não poderiam estar), as velhas amigas dão início a uma complexa relação, envolta de tensão, medo e desejo.
Apesar de ser um romance curtinho (menos de 150 páginas), este é muito rico em camadas e não fica só na questão racial. Irene, por exemplo, é uma personagem muito forte e complexa. Além do estigma de ser uma negra vivendo em um estado segregacionista, ainda carrega os fardos do casamento e da maternidade, a anulação de si mesma em prol de outrem, e acaba por se revelar uma demonstração daquela força feminina de se arrumar e sorrir em público enquanto se despedaça por dentro.
A narrativa é intensa e mesmo ambientes teoricamente tranquilos, como um simples café, deixa a gente apreensivo, com a sensação de que algo de muito ruim pode vir a acontecer a qualquer momento. Larsen é uma escritora muito sutil e que deixa muita coisa subentendida, sobretudo nos diálogos, é um livro que diz muito no não dito e é preciso estar atento para captar suas camadas mais ocultas e entender o que a autora quer passar. "De Passagem" é uma leitura que conversa muito com o nosso contexto atual. Interessante perceber como, no romance, o Brasil era visto como um refúgio para os negros norte-americanos, uma terra onde se dizia não haver preconceito. Já imaginou? É tristemente risível...
Com tradução de Floresta, o volume ainda conta com apresentação de Bianca Santana e posfácio de Ruan Nunes Silva, textos que não apenas complementam a leitura mas destacam a importância de se falar sobre o tema. Em 2021, a obra ganhou uma adaptação pelas mãos da Netflix, dirigida por Rebecca Hall e estrelada por Tessa Thompson e Ruth Negga. Essa foi uma leitura realmente fora da caixinha pra mim, não conhecia o romance e confesso que não sabia quem havia sido Nella Larsen. Surpresas e aprendizados que parcerias com editoras nos permitem vivenciar!
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