Lucas 24/10/2021
"Suco" de estadismo: quando os ideais são maiores que as ideologias
Em tempos com pautas tão extremistas como os atuais, é tênue a linha entre estadismo e demagogia. A exacerbação de sentimentos radicais, o cansaço provocado por políticos que aparentemente não agem como animais irracionais, que simplesmente não falam o que sentem, são condições que criam um movimento a qual a democracia de uma forma geral nunca viu. Parece que nos últimos anos, falar o que "der na telha", expressar em discursos e ações posturas que favorecem uma parte destes radicalismos, entre outras, são ações benéficas, ilustrativas de uma honestidade caricata.
O ex-presidente norte-americano Barack Obama simboliza contrariamente tudo isso: no primeiro volume de suas memórias (A Terra Prometida, lançado em 2020), o leitor terá diante de si um "suco" de estadismo, que parece ainda mais doce na atual conjuntura, onde este ponto fundamental para um grande líder nacional é alvo de tantas ressalvas inócuas.
Narrado em primeira pessoa, é muito fácil para o leitor imaginar o próprio Obama contando suas histórias, suas dificuldades e preconceitos sofridos desde os primórdios de sua existência. Nascido no Havaí em 1961, ele foi o primeiro presidente de origem afrodescendente (seu pai era queniano) da história dos Estados Unidos. Ajuda nesta compreensão a sua narrativa leve e natural que descaracteriza boa parte daquela pompa que qualquer um pode imaginar quando se fala no ocupante do cargo político mais importante do planeta.
O rótulo de sua descendência foi, inegavelmente, o grande baluarte do seu nome e personalidade quando iniciou-se uma internacionalização de suas intenções de concorrer ao cargo, por volta de 2006. Certamente, muitos brasileiros com 25 anos ou mais ouviram este aspecto tão trivial como a cor da pele como uma característica imprescindível para aquele jovem e carismático político de Chicago (ele estabeleceu residência na cidade ao longo dos anos). De fato, num país com um passado tão segregacionista como os EUA (é chocante imaginar que há pouco mais de cinco décadas havia separação entre negros e brancos em espaços públicos numa terra que sempre foi lembrada pela liberdade), esta questão da origem era uma boa fonte de matérias jornalísticas da época. Mas Obama em A Terra Prometida não dramatiza este aspecto em nenhum momento: ele se atém aos fatos históricos e coletivos para explicar esta opressão, que existe na maioria das vezes de formas implícitas.
É importante observar isso porque, certamente, alguns brasileiros (que, espetacularmente, de uma hora para outra, viraram especialistas em política norte-americana), guiados por simples gostos políticos, podem supor uma certa vitimização do biografado em relação à sua cor de pele. Ou a sua suposta origem muçulmana. Ou ao seu viés esquerdista, o que fazia dele um enviado chinês ou russo para destruição dos Estados Unidos. Ou a lenda de que Obama não nasceu em solo americano... Um dos traços de A Terra Prometida é que nele vemos o nascimento das odiosas fake news, tão comuns no contexto atual, mas que são resultantes da velocidade de compartilhamento de informações que vem aumentando universalmente há pelo menos uma década. É curioso, para nós brasileiros, observarmos que até mesmo a maior nação do mundo possui milhares de pessoas que não sabem utilizar essa facilidade para informar, estando mais interessadas em distorcer.
Este problema das fake news não é o único elemento em comum da política brasileira com a norte-americana. Apesar de os Estados Unidos historicamente sustentarem-se basicamente em dois partidos políticos (os Republicanos e os Democratas, este último a qual Obama faz parte), e disso ser uma ferramenta para criticar a pulverização partidária absurda existente por aqui, os acordos políticos, negociações de interesses, entre outros aspectos que muitas vezes fogem dos princípios democráticos e fomentam esquemas de corrupção, também existem nas relações entre o Poder Executivo e Congresso norte-americanos. Obama, em sua narrativa, muitas vezes é obrigado a usar de artifícios contraditórios, especialmente em relação ao que ele pregava enquanto candidato, depois que assume a presidência. Estes arranjos, e ele não faz questão de esconder, são inerentes ao ato de governar, mas são condenáveis diante das perspectivas que oferecem.
Apesar disso, o aspecto tão confuso aos olhos estrangeiros das eleições para presidente dos Estados Unidos (a qual apresenta um quadro abissalmente distinto do exercício da democracia que praticamos por aqui), acaba se esclarecendo com a trajetória da campanha de Barack Obama. É interessante observar que ele, então um político meramente local, se elege ao Senado em 2004 para já em 2008 conseguir a indicação do Partido Democrata para concorrer à presidência. É diferente, por exemplo, da maioria absoluta dos candidatos a presidente do Brasil, as quais normalmente possuem uma carreira consolidada de muitos anos dentro da política, seja sendo deputado, governador, prefeito e por aí vai. A ascensão de Obama tem a ver com o mito americano, de que tudo é possível e etc., mas também denota um amadurecimento e consciência social imprescindíveis ao indivíduo que resolve se prestar a isso. E esta consciência não é fruto do marketing, é algo que deve ser a essência perene de quem se dispõe a este tipo de desafio.
Outro ponto importante neste aspecto de descrição do funcionamento das campanhas eleitorais para presidente nos EUA é a relação conflituosa que membros de um mesmo partido desenvolvem entre si nas chamadas eleições primárias, que escolhem o indicado de cada um dos dois agrupamentos políticos principais. É simbólico nesse sentido que a grande adversária de Barack Obama durante toda a campanha foi Hillary Clinton, democrata como ele e que protagonizou intensa rivalidade nas primárias (e que depois foi sua Secretária de Estado). De fato, dadas as circunstâncias daquele momento (a baixíssima popularidade do então presidente republicano George W. Bush é uma delas), acaba sendo natural que Obama dê mais destaque à campanha nas eleições primárias, as quais foram mais difíceis que as eleições para presidente (onde Obama derrotou o republicano John McCain (1936-2018)).
A trajetória de vida, o compromisso com a esposa e as filhas e sua preocupação social personificam o político, compondo a imagem da ponderação que sustenta uma pessoa que sabe utilizar a política para o bem. Obama, ao assumir a presidência em 2009 com os Estados Unidos a beira de um colapso econômico sem precedentes (o que atingiria o mundo todo também), atuando em duas guerras/ocupações (no Afeganistão e no Iraque), com uma política externa em ebulição, entre outros pontos, teve que usar muito dessa sua ponderação para, se não resolver todos estes e outros problemas, atuar com resiliência diante do poder de suas decisões.
Todos estes e muitos outros pontos constroem um livro extenso, mas de narrativa leve que deriva de uma linguagem simples e, primordialmente, com um desapego à cronologia (especialmente durante os três primeiros anos da presidência, já que o livro se encerra em maio de 2011 com a operação militar que eliminou Osama Bin Laden). Obama narra este período inicial como presidente baseado em temáticas, as quais clarificam o entendimento do leitor e não tornam a leitura em nenhum momento cansativa. Deste modo, têm-se capítulos que falam dos dilemas em termos econômicos (que ocupam a maior parte dos desafios que ele enfrentou enquanto presidente no início do seu mandato), política externa (que em se tratando de EUA sempre traz polêmicas as quais Obama faz questão de não se esquivar, especialmente em relação aos efeitos da atuação norte-americana na história contemporânea), meio ambiente, relações específicas com países como Rússia, China, Irã e Israel, entre muitos outros tópicos que vão intercalando-se entre si.
Isso tudo é significativo daquilo que Barack Obama sempre simbolizou: uma política de ideais, não de ideologias. Desse modo, essa primeira parte de suas memórias, que surge em meio a este movimento de tanto ódio e divisão, é um alento para a crença de que a política, quando utilizada para o bem coletivo, é um instrumento fascinante de mobilização para os povos democráticos e que deve ser preservada para a garantia da harmonia tão primordial para a vida em sociedade.