Vitor451_ 28/05/2022
Uma análise necessária, mas infelizmente subestimada
Ao iniciar sua crítica à meritocracia, Michael Sandel explicita ao leitor os casos de fraude associados ao processo seletivo de entrada para as principais universidades estadunidenses, mostrando aquele que foi, talvez, o principal efeito do regime meritocrático no Ocidente: a "fetichização" do ensino superior como meio de emancipação na economia global.
Na obra, tornam-se claros dois aspectos nos quais a premissa meritocrática tocou de modo pujante: a questão da solidariedade e da supervalorização do academicismo. Quanto aos laços de civismo e pertencimento, é válido pensar que, se somos os únicos responsáveis por nossos acertos e erros, a empatia torna-se um aspecto raro e até reprovável, pois aqueles que estão na base da pirâmide social, a despeito de fatores externos, merecem a posição em que se encontram. No entanto, Sandel rebate tal argumento: ignorar as questões que não estão sob controle do indivíduo cria uma espécie de "arrogância meritocrática" que, em vez de inspirar, aumenta a distância entre ricos e pobres na escala social. Ora, partindo do pressuposto de que os ricos somente têm sua opulência pela sorte de seu capital estar alinhado às demandas na sociedade (na época e local certos, afinal, um pecuarista milionário no Brasil certamente não conseguiria manter seu capital na Índia ou Japão, por exemplo), atribuir aos pobres a sua própria miséria é, no mínimo, imoral - mas é exatamente o que nos dizem os governantes das últimas quadro décadas para cá, seja de modo veemente, seja de maneira sutil.
E, com isso, nascem as contradições do sistema meritocrático, pois, além de ignorar os fatores exógenos que auxiliam alguém a alcançar o sucesso - alimentação, ensino, princípios - a QUEM cabe definir a fronteira entre aquilo sobre o que se tem controle e as questões externas a nós?
Sobre o segundo aspecto modificado pela meritocracia, o fetiche associado à faculdade visa encobrir a consequência de uma globalização favorável ao mercado: a galopante desigualdade que, descortinada nas últimas décadas, fez com que os políticos - os mesmos defensores de tal globalização - atribuíssem ao ensino superior a tarefa quase messiânica de resolver as mazelas sociais. A partir daí, surgem outros dois problemas:
1 - Achar que TODOS almejam um curso superior desvaloriza gravemente outras formas de trabalho e cria profissionais infelizes, os quais, segundo os dados trazidos por Sandel, não ascenderam como prometiam os proponentes da meritocracia.
2 - Àqueles que ainda conseguem ascender restam a ansiedade e os traumas, frutos de uma educação que, desde cedo, incumbe aos pais a tarefa de tratar a faculdade não só um como um caminho para a realização profissional, mas também como um objetivo para a própria felicidade humana. Com isso, cada vez mais jovens relatam sintomas de ansiedade e depressão em virtude da cobrança que lhes é imposta, até mesmo no transcurso do ensino superior, já passado o obstáculo do vestibular.
Ok, mas como isso afeta o regime democrático?
É simples. Basta pensar sob o ponto de vista daqueles que ficaram para trás na corrida da globalização e do mérito. Esse público, em sua maioria sem ensino superior, cansou-se do credencialismo divulgado na imprensa por governantes que, sutilmente, ignoram as demandas de tal grupo e justificam sua condição.
É aí que reside o perigo; ressentidas e afetadas pelas perdas salariais, essas pessoas aderem a discursos populistas de figuras autoritárias que absorvem tal público e ameaçam o processo democrático. Com isso fica fácil entender as eleições americanas de 2016: enquanto a candidata democrata, que repetiu o discurso de seus antecessores, ganhou nas grandes metrópoles do leste e nas cidades com mais graduados na faculdade - os locais "vencedores" da globalização - , seu adversário republicano obteve larga vantagem no centro e do interior do país - que ainda não assistiram aos benefícios da globalização, tão prometidos pelos líderes anteriores.
Mas como mudar isso? Vetando definitivamente o mérito de nossas vidas e retornando ao sistema de nepotismo?
Não. Como solução, o autor apresenta a ampliação no investimento do ensino técnico - deteriorado devido ao fetiche em torno da Academia -, bem como um processo de seleção universitário que aumente a influência do acaso na escolha dos candidatos.
Conclusão: Um livro excepcional cujo conteúdo ainda não foi tão conhecido (talvez pelo seu recente lançamento, em 2020). Traz à tona ideias de diversos autores e amplia os horizontes com exemplos e citações através de linguagem técnica - mas de fácil entendimento - , com o intuito de mostrar ao leitor o quão imoral é a lógica do mérito, desde a sua teoria até a implantação. Apesar de abordar a realidade de seu país, recomendo a obra de Sandel a todos que não moram nos EUA, pois a questão de mérito está arraigada em todo o cotidiano ocidental.
Obs.: Por serem as primeiras edições traduzidas, algumas páginas apresentam erros de gramática, especialmente concordância e omissão de artigos, mas isso é raro e não compromete a leitura.