Coisas de Mineira 13/04/2021
“Questão de Classe” é o novo livro da autora Christina Dalcher, publicado no Brasil pela Editora Arqueiro. Sim, a autora volta com uma nova e excelente proposta de um universo distópico. Embora eu tenha me decepcionado muito com o final de “Vox” (seu primeiro livro), fiquei também muito ansiosa para dar uma nova oportunidade para a situação/problema criada por ela dessa vez. É sobre essa experiência de leitura que venho falar com vocês hoje.
A sociedade e sua mania de buscar a perfeição… Elena Fairchild é uma professora de um renomado colégio, um prata. E isso diz muito nessa nova organização social em que vive, ainda mais sendo esposa do idealizador de tudo isso. Mas suas vantagens não vem através de seus méritos como professora ou esposa, não diretamente. As pessoas agora tem seu valor medido através do seu número Q, e essa medição se inicia e tem seu principal foco nas crianças em idade escolar.
“Os ônibus amarelos só aparecem uma vez por mês, sempre na segunda-feira do dia de provas. E não retornam à tarde. Nunca voltam. Pelo menos não com passageiros. Além disso, não entram em bairros como o nosso.”
As crianças de médias 9 e 10 estão alocadas nas grandiosas escolas prata, as de média 8 nas escolas verde, agora abaixo disso… Bom, abaixo disso, após um teste mensal realizado em todas as escolas, essas crianças são recolhidas em suas casas e levadas para as escolas amarelas. Lá ficam longe de seus pais, podem receber uma visita ao ano e recebem uma educação voltada para a formação em atividades de suporte nos demais ramos. Não existe chance de ser grande ou “importante” vindo de uma escola amarela, mas a lógica é essa: você não merece.
As notas Q levam muito em consideração também. Apesar do principal ser as notas, considera-se também sua posição social, nota dos demais filhos ou irmãos e até mesmo atrasos e faltas no trabalho. Então Elena sempre viveu sua vida com certa “tranquilidade” em relação à seu número Q e o de sua família, ignorando os demais dramas e tristezas envolvendo os demais. Até o dia em que sua filha mais nova, Freddie, volta pra casa com uma nota baixa e precisa ir para uma escola federal amarela. Ela nunca soube do que seria capaz para salvar suas filhas, mas agora irá descobrir ao enfrentar todo o sistema.
“…o ponto crucial, o que as pessoas precisam entender, é que não somos todos iguais. Digam, pais, vocês querem seu filho em uma sala com alunos que se desviam do padrão? Com crianças que não têm capacidade para entender as lutas e desafios que seu filho de 5 anos enfrenta? Com professores cujo tempo é tão disputado que todo mundo, todo mundo, acaba se prejudicando?”
Em “Questão de Classe”, Christina Dalcher volta mais uma vez com um incrível recorte de um problema social, se inspirando corajosamente no nazismo e no movimento de eugenia americano. Sua composição da sociedade distópica é perfeita e te transporta facilmente para o local e para as vivências da personagem principal. Todos os elementos estão presentes: a revolta pela situação; a angústia pelo futuro; a curiosidade em saber como chegaram a esse ponto; e o medo e desespero pelas semelhanças encontradas com o que vivemos hoje.
O sistema de número Q criado em “Questão de Classe” teve como base a revolta por parte de pais e “pessoas de bem” que compraram o discurso da indignação pelo governo gastar dinheiro público com que “não merece”. Pais foram usados como massa de manobra ao serem questionados se queriam mesmo que seus filhos brilhantes ficassem misturados em escolas com outros jovens sem a mesma capacidade intelectual. Se queriam que o governo gastasse verba com estrutura e professores que não poderiam desenvolver igualmente todos os alunos devido à grande variação de capacidade.
“Não demorou muito para as pessoas ‘embarcarem no trem do bom senso’, como meu marido gosta de dizer. Claro, em troca de grandes mudanças na esfera da educação, o público precisaria fazer algumas concessões: os administradores, e não os pais, é que sabiam das coisas,”
E como toda ideia absurda baseada na exclusão e no capacitismo, com o consentimento social, não parou por aí. Novas regras começaram a ser implantadas, o cálculo começou a ficar mais complicado e novas variantes de desagrado “aos criadores” começaram a fazer parte da conta. Entendem então a gravidade a longo prazo (porque a de curto é evidente) desse sistema? Com a ampla gama de possibilidades de estar fora do padrão de perfeição, pode-se definir quem merece ou não continuar no convívio de todos e obviamente merece deixar suas informações genéticas para uma geração futura.
Sendo assim, situações incômodas e momentos de reflexão não faltaram para mim durante essa leitura. Por isso, mais uma vez eu esperava mais da autora na hora do desfecho. Pois é, mais uma vez me decepcionei com ela. Assim como disse em “Vox”, Dalcher parece ter deixado muito a ser resolvido no fim e concluiu metendo os pés pelas mãos. O seu padrão de escrita mais uma vez foi o mesmo: um início lento mas bem detalhado sobre a sociedade da história (necessário), um desenvolvimento moroso e com poucos acontecimentos marcantes, e um final acelerado repleto de situações sem muita explicação e até mesmo pouco críveis. Infelizmente!
Sei que muita gente gostou do seu primeiro livro, “Vox”, e acredito que isso seja de conhecimento da autora, pois em “Questão de Classe” ela praticamente usou o mesmo molde. Olha, em alguns momentos eu até achei que era a mesma protagonista! Mulher com grande papel no sistema, de formação profissional importante, marido omisso (mas justiça sendo feita, esse de agora é bem cruel), filhos que a motivam a lutar contra a opressão, uma filha encaixada nas novas regras e outra não, um amor do passado de quem nunca esqueceu… Muitas semelhanças!
Mais do que nunca eu torci para que Dalcher arrasasse no final, digno da grande ideia que criou. Mas acabou ficando até meio semelhante ao final do mais recente livro de uma famosa autora distópica (que tem uma série inspirada em sua obra suuuuuper premiada), com quem Christina Dalcher tem até sido comparada. No entanto, é ruim que não vale a pena ler o livro? De maneira nenhuma. Como eu disse, a história provoca incômodo e reflexão, além de mexer em uma boa ferida americana, que é seu antigo movimento pouquíssimo comentado de eugenia.
É inegável também como a identidade visual criada pela Editora Arqueiro para a autora é impactante. Assim como “Vox”, “Questão de Classe” tem sua capa toda branca com detalhes em um vermelho bem forte. Eu não sei vocês, mas quando pego um livro nessas cores já espero o impacto. E ele veio. Não tão forte como eu gostaria, mas veio! então meu conselho é para que não deixem de ler o livro, no entanto ignorem algumas pontas soltas ou enrolações e foquem em sua grande inspiração em fatos reais. Nas grandes chances de erros do passado serem facilmente replicados atualmente. Acredito, inclusive, que essa tenha sido a grande vontade da autora.
Por: Karina Rodrigues
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