spoiler visualizarThiago Barbosa Santos 17/12/2022
DORAMAR OU A ODISSEIA
Itamar Vieira Júnior é a maior revelação da literatura brasileira dos últimos tempos. Eu diria até mesmo uma das maiores da literatura em língua portuguesa. Seu best-seller é o romance TORTO ARADO, bastante comentado, traduzido em diversos países é que está sendo adaptado para o audiovisual. Mas depois do sucesso deste livro, ele lançou um de contos que tem extrema qualidade textual, assim como o outro. É o DORAMAR OU A ODISSEIA.
A FLORESTA DO ADEUS - o primeiro conto é sobre um lugar dividido entre a civilização e o atraso. Dividido fisicamente mesmo, uma barreira protegida e resguardada por soldados para que ninguém invada o outro lado. Uma família vai a essa fronteira para levar pães e ter contado com o sobrinho, que está do outro lado para tentar estudar e ter uma vida melhor. Ele se apaixona pela prima, um amor cultivado desde a infância. Os dois começam a se encontrar a sós naquele limite, que aos poucos vai ficando frouxo com a complacência dos soldados.
FAROL DAS ALMAS - é a história de trabalhadores que se dedicaram arduamente ao ofício de construir um farol que evitasse milhares de mortes durante viagens marítimas. Na maioria dessas viagens, o transporte era de escravos transportados, muitos deles morriam no caminho quando a embarcação encalhava. A prioridade era sempre salvar os brancos e os escravos mais fortes para o trabalho.
O QUE QUEIMA - conto entre dois personagens que jamais se encontrarão, mas que dividem a mesma aflição. Não conseguem se reconhecer na nova morada. Um é fugitivo de uma tragédia na própria aldeia e passa a se alojar no mundo, vivendo os perigos de cada lugar. A outra é uma mulher que comprou uma casa e passa a ter alucinações com a antiga proprietária do imóvel. Termina queimando a moradia e se entregando às chamas.
ALMA - melhor conto do livro, talvez um dos melhores contos que eu li em muitos anos. Alma é uma mulher escravizada que está fugindo, neste caminho, ela passa provações e sofre tanto quanto, ou até mais, do que quando era escravizada. Ela mesma vai narrando todos esses percalços e o leitor vai descobrindo mais sobre a sofrida vida de Alma. No fim, temos a revelação de como ela conseguiu a ?liberdade?. É um conto forte, intenso e tocante.
A ORAÇÃO DO CARRASCO - outro conto primoroso que começa com uma oração que um carrasco faz ao seu sentenciado. Na sequência, acompanhamos mais sobre a história de vida dele, que vinha de uma família de carrascos e foi treinado desde cedo matando animais. Aquele não era, definitivamente, o que queria, mas aceitou o próprio destino e nunca falhou, mas demonstrava enorme respeito e compaixão por todos que executava, limpava-os, tratava todos muito bem. No fim, teve que executar o próprio filho, que não queria aquele futuro. A execução foi um livramento para que o jovem não seguisse o destino de carrasco. O homem carregava uma enorme culpa por cada morte. O conto se encerra falando sobre os carrascos da vida real, com uma dura crítica aos que desempenharam esse horrendo papel, aos que sentiram culpa e aos que viveram tranquilamente, sem carregar o peso na consciência.
O ESPÍRITO ABONI DAS COISAS - conto que explora as tradições indígenas. Traz a crítica ao homem branco pela opressão e destruição na natureza e conta a história do valente guerreiro Tokowisa, que arrisca a própria vida indo na tribo vizinha e inimiga resgatar a amada Yanici, que espera um filho dela. Ela retorna em segurança para a canoa e tem o filho do casal, espera o retorno dele amamentando a criança. Mas o guerreiro, quando sai para uma batalha, nem sempre volta. Será o caso de Tokowisa?
NA PROFUNDEZA DO LAGO - conto que traz a história de um casal que vai passar alguns dias em uma fazenda. A mulher está perturbada e quer encontrar a tranquilidade que um dia perdeu. Lá, vai descobrindo aos poucos que construíram uma espécie de muro que represava a água do outro lado, fazendo com que muitas famílias passassem fome. Ela pegou um machado e tentou, de forma atabalhoada, romper o muro. Perdeu o machado e caiu nas profundezas do rio, encontrando uma tranquilidade que nunca mais havia sentido.
INQUIETO RUMOR DA PAISAGEM - conta a história de uma moça que tenta salvar um grande peixe encalhado de ser destroçado pela população de pescadores. Enquanto fica desacordada ao ser agredida por tentar defender o animal, ela vai passando, no inconsciente, os traumas que sofreu ao tentar sair daquelas terras em busca de uma vida melhor, como foi vítima da prostituição e pensa como a irmã mais nova também sofrerá o mesmo. Ao acordar, encontra somente a carcaça do peixe e retorna para casa desconsolada.
MEU MAR (FÉ) - narrado por uma das protagonistas. Ela conta o trauma que viveu quando decidiu partir com o seu companheiro para o Brasil, em uma embarcação clandestina. Foram, com outros imigrantes, escondidos em um contêiner mas foram descobertos. Os marido e os colegas espancados, ela violentada por quatro homens até que foram jogados ao mar. Ela se afagou tentando salvar outros colegas, ela foi resgatada com outros sobreviventes. Passou a viver em um abrigo, trabalhar de camelô enquanto alimentava diariamente a esperança de ver o seu companheiro voltar do mar. Percebeu estar grávida. No momento de desespero, se atirou ao mar, mergulhou bem fundo para reencontrar o marido. Foi resgatada novamente. Ali, percebeu os perigos do Brasil, como somos aparentemente pacatos e receptivos, mas racistas e xenófobos. O conto termina com ela apresentando o filho ao mar, que é o seu companheiro.
DORAMAR OU A ODISSEIA - conto que dá nome ao livro. Narrado em primeira pessoa por DORAMAR. No princípio, ela encontra um cachorro moribundo, morrendo, e fica na dúvida sobre ajudar ou seguir em frente. Segue com remorso e vai revisitando na narração a dura infância que teve, a pobreza, a fome, as dificuldades em família, o trauma do namorado que virou bandido e foi morto pela polícia. Ela é doméstica, moradora de favela. É uma das mulheres fortes que cada conto do livro traz, mais uma narrativa poética do autor.
VOLTAR - fala sobre uma terra que não mais vai existir, se transformará em água, obra de uma hidrelétrica que passará a funcionar por lá. O único empecilho para o início da obra é uma senhora que se nega a sair de lá. Ela foi parteira, recebeu a missão de ?se livrar? de um menino bastardo, de um homem rico e poderoso. Quis criá-lo, mas foi ameaçada. Era para tirar o menino de lá. Foi para uma cidade qualquer e o entregou a uma moça que se encantou por ele. Viveu com a culpa e só sairia de sua casa quando ele voltasse. O encarregado da obra, responsável por despejá-la, por bem ou por mal, foi reconhecido como sendo o garoto, ela já estava meio cega e caduca. Ele se impressionou, deixou-se levar pelo devaneio dela, se rendeu àquela mulher, às palavras dela, parecia ter encontrado sua essência, sua própria história, bebeu café, pernoitou dormindo na rede daquela casa, se sentiu em casa. No dia seguinte de manhã, notou que ela havia desaparecido. Havia acabado o único entrave para o início da obra. Logo, tudo aquilo era água, e ele era outro, para sempre.
MANTO DE APRESENTAÇÃO - conto escrito de um só fôlego, sem ponto final em todo o texto, somente cadenciado pelas vírgulas, que dão ritmo a à voz direcionada ao Jesus Menino, uma voz que o acompanha desde o início. Traz elementos biográficos do artista plástico sergipano Arthur Bispo do Rosário. Foi inspirado em uma dissertação sobre a personagem em questão.