Stella F.. 20/09/2023
Uma trama com muita poesia!
O Mapeador de Ausências
Mia Couto - 2021 / 288 páginas - Companhia das Letras
“Esta é a história de um jornalista e poeta português, um homem ingénuo a quem entregam provas de um massacre cometido pelas tropas portuguesas em Moçambique no ano de 1973. Esse homem bom e ingénuo era o meu pai. Nessa altura, a guerra de libertação nacional tinha chegado às portas da nossa cidade, a Beira. A loucura foi a resposta em alguns dos bairros brancos. Aprendi, então, que a doença, é, por vezes, o único remédio. Para alguns, era preciso esquecer o que se passava para que houvesse futuro. Para outros, o que se passava era já o futuro.” (Nota do autor, pg. 7)
Diogo Santiago chega a sua cidade natal Beira (Moçambique) para uma homenagem. Ele é poeta, assim como seu pai Adriano Santiago. Ele não gosta de homenagens e sai para um lugar recuado e lá encontra Liana Campos, que se apresenta como neta de um antigo conhecido do pai de Diogo. Saem para conversar e descobre que ela possui documentos da polícia de repressão, o PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado), mais tarde denominada DGS (Direção Geral de Segurança), época de rebelião a favor da emancipação de Moçambique, que podem esclarecer a morte do pai e do primo Sandro.
“Estou de visita à Beira, a minha cidade natal; venho a convite de uma universidade. Desde que aqui cheguei, visitei escolas, reuni com professores e alunos, falei com eles sobre o assunto que mais me interessa: a poesia. Sou professor de literatura, o meu universo é pequeno, mas infinito. A poesia não é um género literário, é um idioma anterior a todas as palavras. Foi isso que repeti em cada um dos debates.
Nesses dias, caminhei pelos lugares da minha infância como quem passeia num pântano: pisando o chão com as pontas dos pés. Um passo em falso e corria o risco de me afundar em escuros abismos. Eis a minha doença: não me restam lembranças, tenho apenas sonhos. Sou um inventor de esquecimentos.” (pg. 12)
Os capítulos são intercalados. Em alguns capítulos Diogo retorna a lugares e revê pessoas relacionadas ao seu passado, sua infância e adolescência, pessoas que talvez possam esclarecer um pouco os acontecimentos da época, acontecimentos que Diogo anotava em um diário, mas que são confusos para ele, por ainda não ter entendimento suficiente. Ele entra em contato além de Liana, com Camila (antiga namoradinha) e Rosinha (uma vizinha fofoqueira). Em outros capítulos vamos conhecer os documentos digitalizados por Liana e cedidos a Diogo para análise. E são como uma trama que ele tem que tecer e ligar os pontos, uma trama muito bem construída e feita com esmero pelo autor, com muita poesia, e com uma beleza, apesar do sofrimento que vemos nos relatos, sobre a repressão, sobre as humilhações que os negros sofreram, a clássica divisão entre brancos e negros, repressão contra mulheres, assuntos já tão conhecidos, mas aqui como um suspense que você pensa que está entendendo, mas não, tem mais um fio fora da trama, que aos pouquinhos vamos trançando melhor.
Como Diogo está se relacionando diretamente com Liana, o autor vai nos esclarecer melhor sua vida. Conhecemos a história de sua mãe, Almalinda, seu sumiço e a busca da filha por informações sobre o porquê ela ter sido criada pelo avô. O que se conhece a princípio da história dessa mãe é que ela quase morreu, mas foi resgatada do rio, e seu namorado, um negro, morreu afogado e eles estavam atados por uma corrente. A filha descobre agora, 40 anos depois, que a mãe foi resgatada por um barqueiro, e que foi levada a um vilarejo pelo próprio pai com a ordem de enviá-la a Portugal. Diogo e Liana ficam sabendo de Soraya, uma prostituta que tem um salão de beleza. Ela então vai esmiuçar a história da mãe de Liana para os dois, e eles ficam sabendo que ela foi dada pelo pai por ser negra, e ter namorado um negro, colocada em um orfanato desde que a mãe morreu, e após o incidente do rio (quase morte) ela foi escondida, e depois levada para Lisboa. Lá voltou ao orfanato e foi feita e prostituta e quando conseguiu voltar para Moçambique logo depois morreu. Era considerada uma rainha das águas.
Diogo possui lembranças de suas idas com o pai e o empregado negro, Benedito em sua ajuda aos rebelados em Inhaminga, quando era criança. Lá existe um convento de padres que ajudam os refugiados e outros são informantes, trabalham para o governo. O pai acabou se envolvendo, querendo ajudar os amigos que acreditavam na revolução, e quando vê não tem mais volta. Ele gostava de livros, era professor, e acabou envolvido e preso. Tem sua casa invadida à procura de documentos suspeitos. No presente, Benedito terminou os estudos, já é um senhor e é uma personalidade importante na cidade. Diogo, que acreditava que eram amigos, mas Benedito não vê assim. Ele era o patrão, mesmo sendo criança, e ele o empregado negro que obedecia aos patrões. Diogo então fala a seguinte frase, linda: "Sou um poeta revolucionário que perdeu a fé na poesia e na revolução. Proclamo que quero o mundo às avessas e aqui estou eu, um patrão branco quase em prantos junto a um empregado negro que o quer consolar e não se sente autorizado. Abraça-me Benedito. Preciso do seu abraço. (pg. 176)"
Ao analisar os documentos, Diogo consegue saber que Sandro desapareceu, mas não se tem notícias do que aconteceu a ele, sabe-se apenas que fugiu para não ter que matar pessoas. Sandro era malvisto pelos colegas do exército, por ser afeminado. Em retrospectiva, tomamos conhecimento de que Adriano Santiago foi em busca do sobrinho/filho porque sua esposa o adorava, até mais do que ao próprio filho, e exigiu uma posição do marido. Ele descobre que Sandro está vivo, e ao mesmo tempo este cobra uma posição dele, uma postura decente em relação a ele. filho disfarçado de sobrinho. Então descobrimos a relação de Adriano com a mãe de Sandro e sua adoção pela família.
Amei! Que livro bem costurado. Quando pensamos que já sabemos de tudo, vem mais uma camada. Personagens cativantes e humanos com muita poesia e histórias bem construídas. Guerra civil, independência de Moçambique. Cidade da Beira e Inhaminga. Personagens brancos e pretos, um claro preconceito e uma tentativa de alguns personagens em não aceitar isso. Dois poetas, filhas maltratadas pelos pais, amor vencendo as raças, mistério, órgãos repressores, mortes, assassinatos e arrependimentos, papéis da guerra e agentes duplos. Diogo Santiago, Adriano Santiago, Verônica, Dona Laura, Camila, Liana Santiago, Capitine, Maniara, Almalinda, Rosinha, Oscar Campos. Formam uma teia, onde todos estão envolvidos de alguma maneira nos acontecimentos. A escrita e a poesia de Mia Couto são um assombro! Trechos lindos e um pouco de lendas e misticismo inerente às obras dele. Recomendo!
“A casa é uma espera, regressa apenas quem nunca dela saiu.” (Adriano Santiago, personagem, pg. 183)