Brunífero 24/02/2022
Saio leve como o ar da leitura com a intensidade de um vômito
No campo da história, não é comum a categoria analítica de "geração". Não tenho uma explicação do porquê disso, mas acredito que um dos principais fatores é que, essencialmente, é uma definição temporal arbitrária que junta um monte de gente que, ao contrário do que a publicidade pode vender, muitas vezes nem tem tanto assim em comum. A geração millenial dos EUA definitivamente não é a mesma no Brasil, e mesmo lá, há recortes necessários para quem quer evitar uma falsa universalidade. No entanto, o que o livro aqui trata vai muito além do cansaço de uma geração, mas de um sintoma da sociedade moderna: o burnout.
A autora, a jornalista e ex-professora universitária Anne Helen Petersen, teve um primeiro contato com o tema em 2018, quando escreveu um ensaio viral sobre o tema para o Buzzfeed. Como ela relatou depois, ela estava absolutamente estafada depois de uma rotina intensa de trabalho, e isso a perseguia até nos momentos de descanso. A partir daí, surge o ensaio num primeiro momento, e deste ensaio, agora expandido e revisado, surge "Não Aguento Mais Não Aguentar Mais"
Tendo como ponto de partida a superfície da síndrome de burnout, a autora traça uma verdadeira genealogia do mal-estar contemporâneo a partir de investigações sobre o passado recente dos Estados Unidos, e cada capítulo do livro fala sobre cada uma das facetas de nosso burnout, a insurgência do FOMO (sigla em inglês para "Medo de Perder o Momento", em tradução livre), a cultura hipercompetitiva e que, paradoxalmente, finge se preocupar se nós "trabalhamos com o que se gosta", a situação atual do ensino superior e a experiência familiar. Cada um desses aspectos é livro é destrinchado com boa profundidade teórica e suportada por entrevistas realizadas pela autora especialmente para esse livro. Quando esquadrinha o assunto, Petersen realmente não deixa pontos cegos. É ver pra crer.
Em resumo, a tese da autora é a de que a cultura estadunidense de burnout é ensejada em meados dos anos 70, com a desaceleração da economia e o começo do processo de desintegração do Estado de Bem-Estar Social. Nesse contexto, a saída encontrada pela geração de então, os boomers (sempre eles), especialmente os de classe média alta, foi o de intensificar o processo de individualismo americano, a partir da implementação do neoliberalismo com o governo Ronald Reagan. Paralelo ao desmonte econômico, que marca o início da geração millenial, teve início um acirramento da competitividade, que ia desde a criação até o momento do vestibular; as Ivy League (universidades tradicionais estadunidenses) se tornaram ainda mais cobiçadas do que já eram, mas contraditoriamente (ao menos na aparência) se firmou a ideia de trabalhar com o que se ama em primeiro lugar, uma decisão feita com a satisfação pessoal em mente, mas que acabou por justificar precarização profissional e uma cobrança mental a mais. Esse cenário viria a piorar com a ascensão das redes sociais, sufocante por seu excesso de informação, e a crise de 2008, que precarizou e muito as condições de trabalho dos millenials. A autora não aborda os impactos da pandemia; ela só toca no assunto em um prefácio assumidamente de última hora, explicando que não conseguiria abordar essa nova crise com o mesmo nível do resto do livro. Mas do ponto de vista dela, o vírus só piorou a situação já estabelecida.
Por mais que eu não seja um estadunidense e não me enquadre no recorte geracional do livro, ler o livro foi de tirar o ar. No dia em que peguei esse livro para ler, não estava muito a fim de fazer uma sessão longa de leitura - minha concentração não tá das melhores nos últimos tempos. Quando me sentei, li o prefácio, a introdução, o primeiro capítulo, o segundo, o terceiro... e não consegui parar mais. A escrita concisa, sarcástica e direta do livro ajudou demais nisso. Mas creio que pesou mais a urgência dos temas nessa vida tão dura e imediatista quanto a atual. A autora não fala sobre a ascensão do debate de saúde mental que vivemos hoje, e esse livro é o puro suco disso. Para além da luta das últimas décadas, me parece que nós adotamos esse mote simplesmente por não termos escolha. Para cada stories de autoajuda do instagram, quantos de nós não continua com uma ética workaholic de trabalho? isso quando não estamos afundados em crises. Me parece um movimento de fluxos e refluxos: em busca do nosso bem estar, acabamos por discutir, um pouco forçadamente, o nosso cansaço de tudo. Talvez por isso, quando eu li a conclusão, eu senti aquele alívio de quem sabe que não é o único.
Até pelo estado de desolação que nos encontramos, não há propostas de soluções claras no livro. Há, porém, a exaustão de quem é moído por esse status quo, e o desânimo quase total diante do presente. Em tempos doentes como os nossos, a sensação que se tem é que não há muito o que salvar mesmo. "Que arda"
*A edição brasileira, da HarperCollins Brasil, mantém o texto integral da obra. Foi incluído um prefácio da roteirista Renata Corrêa, que contextualiza as ideias da obra para o contexto brasileiro.