Lucas 08/11/2022
Lula: uma senha que, quando dita, desperta o lado passional de praticamente qualquer brasileiro (a)
Nenhum outro nome possui tanto potencial inflamável quando colocado em evidência no contexto atual tão rachado a qual vivemos: Luiz Inácio "Lula" da Silva é um balde de combustível, capaz de atiçar qualquer lado em qualquer discussão política, de qualquer vulto ou alcance midiático. E por mais que disso resultem debates em sua maioria inócuos, que só aprofundam essas diferenças, é preciso que se entenda e se reflita a respeito deste que é o mais conhecido político brasileiro dos últimos setenta anos.
Deste modo, acredito que é um ato de coragem o que fez o biógrafo mineiro Fernando Morais (1946-), conhecido por obras como Olga (1985) e Chatô, o Rei do Brasil (1994): lançar-se à escrita da biografia de Lula, que será publicada a princípio em dois volumes (o primeiro deles, lançado em 2021). Ato de coragem porque, além da questão de divisão que a simples menção a Lula desperta, o autor carrega consigo duas coisas absolutamente preponderantes em qualquer trabalho biográfico: 1) a contemporaneidade com o personagem biografado e 2) a influência que o mesmo exerce sobre o biógrafo, já que Morais sempre identificou-se ao menos parcialmente com os ideais defendidos por Lula e seu grupo político. Com estes dois aspectos, é inevitável que o leitor tenha em mãos um texto que não é totalmente isento, o que prejudica um pouco o caráter informativo universal da obra.
A própria estrutura deste primeiro volume é montada enviesadamente: começa descrevendo o agitado ano de 2018 no Brasil, com a prisão do biografado após desdobramentos da operação Lava Jato. Fernando Morais narra muitos bastidores até então desconhecidos da prisão de Lula e seu posterior encarceramento na Superintendência da PRF de Curitiba. Tanto o estardalhaço da sua prisão bem como um resumo dos 580 dias a qual Lula ficou recluso são o foco dos seis primeiros capítulos. Correspondem, por isso, a parte menos isenta da obra. Entretanto, esta ausência de isenção, ao meu ver, não torna o texto "panfletário" e radical: apenas o foco fica restrito a somente um lado, mas a narrativa não se prima por uma ironia constante, o que enfraqueceria o tom do que é descrito.
Daí em diante, Morais volta no tempo. Primeiramente, ao ano de 1980, quando Lula, então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo/SP, é preso por organizar as primeiras greves trabalhistas desde 1968, as quais fizeram com que cerca de 300 mil operários cruzassem os braços em busca de melhores salários. Essa primeira parada no tempo dura pouco: depois, a narrativa remonta ao início da vida do biografado, nascido em Caetés, distrito de Garanhuns, interior de Pernambuco. Sétimo e penúltimo filho de uma família que depois migrou para Santos, litoral de São Paulo, Lula (e isso é inegável, mas não pode ser usado como justificativa de desvios de conduta) teve uma vida tremendamente difícil e trágica (a morte da sua primeira esposa e filho é um exemplo disso). Mesmo que acelerada, a descrição de Fernando Morais é precisa e choca (Lula e sua família chegaram a morar numa casa com quase vinte agregados, dormindo no chão e ao lado de um sujo banheiro nos fundos de um bar).
Nessa narrativa acelerada que marca este primeiro volume (e a qual termina cronologicamente em 1982, quando Lula e o Partido dos Trabalhadores disputam sua primeira eleição e são humilhados na busca pelo governo de São Paulo), Fernando Morais contextualiza alguns temas que hoje são distorcidos com as mais criativas fake news. Os sindicatos, por exemplo, que muitas pessoas acreditam ser um antro de desocupados e baderneiros ou um inimigo dos empresários, exerciam naquela época uma função social importantíssima para uma classe trabalhadora sem instrução: eles patrocinavam várias ações comunitárias, como oferecimento de cursos supletivos, serviços jurídicos voltados ao trabalho, eventos para arrecadação de recursos destinados à alguma ação social, representatividade em demandas com empresários, interações e confraternizações entre associados e por aí vai. O nascimento do PT como grupo político formado majoritariamente por operários e intelectuais em detrimento de políticos propriamente ditos e não por "maconheiros", "abortistas" ou "defensores da bandidagem e do caos" também serve como exemplo de discussão de arcabouços temáticos atualmente distorcidos. Evidentemente que o tempo passou, muita coisa saiu do rumo, mas jogar todos estes aspectos históricos no lixo pode ser temerário.
Avaliar o personagem Lula é igualmente temerário, porque conforme mencionado no início ele desperta o lado passional, seja de quem o critica ou de quem o apoia. O grande líder da esquerda brasileira dos últimos trinta anos se colocou num papel eu diria maior que o seu segmento político. Não há ninguém em nenhum espectro com a sua capacidade de falar aos mais pobres, aos que vivem à margem de tudo e de todos e por aí vai. Mas a sua imagem, o seu primeiro governo (marcado por enormes avanços sociais e maior inclusão) carrega consigo pontos obscuros, alguns deles imaginados, outros expostos. Estes pontos, entretanto, não devem ser confundidos na formação de uma miríade de preconceitos pela qual ele passou e passa, relacionados à sua origem e história de vida e as quais não devem ser adaptados para rotular mais ninguém. Todavia, sua biografia, seus tempos de retirante e operário jamais podem ser usados como algum fator que abone a sua conduta passada e futura... Enfim, falar de Lula é empregar todas as conjunções adversativas permitidas pela língua portuguesa e, mesmo assim, nem tudo será dito a seu respeito.
Tal complexidade num personagem só pode ser julgada pela mais implacável das juízas: a história. O passar dos anos e das gerações é que vai definir o grau de importância de Lula para o Brasil das gerações que não o viram. E mesmo assim a história não é definitiva: Getúlio Vargas, talvez o político brasileiro mais impactante antes de Lula, não possui um lugar cativo e objetivo na história do Brasil, sendo odiado por muitos e amado por outros. Mas num fato Vargas é destacável: o impacto da sua existência repercute até hoje, quase setenta anos depois da sua morte. Prever qualquer destino histórico para Lula é absurdo, mas saber dimensionar a sua importância histórica, seus ideais (contaminados ou não), seu carisma, o alcance do seu discurso, sua biografia até os trinta anos, entre outros múltiplos pontos, não é assumir uma defesa histérica do personagem. É sim olhar pra frente, imaginar os livros de história que nossos netos e bisnetos irão ler.
Desse modo, a grande restrição desse projeto de Fernando Morais, além da questão ideológica pela qual o biografado prende o biógrafo, é o tempo: Lula só terá uma biografia solidamente isenta quando a tal juíza (a história) tecer seu julgamento, a qual não cabe apelo, nem instâncias superiores. Isso não significa que esse primeiro volume deve ser deixado de lado. Ele oferece sim uma perspectiva unilateral (o que serve de alerta para opositores mais apaixonados), mas com uma descrição precisa do tempo e da realidade que moldou Lula, aqui destacado quase que exclusivamente como um grande líder sindical que peitou um regime de exceção decadente em busca de melhores condições de vida para trabalhadores.