Flávia Menezes 11/02/2024
O LOUCO DE WALL STREET.
?Bartleby ? O Escrivão? é um conto do escritor norte-americano Herman Melville, publicado primeiramente de forma anônima na revista americana Putmam´s Magazine em duas partes, tendo a primeira parte sido divulgada em novembro de 1853, e a sua conclusão em dezembro do mesmo ano.
Neste conto, que apesar de curto é capaz de nos despertar para uma infinidade de reflexões, acompanhamos a história através dos olhos de um narrador cujo nome desconhecemos, mas de quem sabemos se tratar de um advogado sem muitas ambições, que comanda um negócio confortável no qual auxilia homens ricos a lidar com hipotecas e títulos de propriedade, em um escritório localizado no coração do Distrito Financeiro (Wall Street) da cidade que nunca dorme (Nova York).
Para auxiliá-lo em seus trabalhos, esse advogado conta com três funcionários, sendo dois escrivães, um apelidado por Nippers, que sofre de indigestão crônica, e o outro por Turkey, que vive por se embriagar no horário do almoço, e além deles, ainda há o office boy menor de idade chamado por eles por Ginger Nut.
Devido às constantes falhas cometidas por seus empregados, o narrador-advogado se vê pressionado a contratar um terceiro escrivão, e é aí que somos apresentados a Bartleby, um homem reservado e introvertido, que com a sua aparente calma traz a esperança de se tornar o exemplo para os seus indisciplinados Nippers e Turkey.
Porém, toda a fé que o advogado possuía em Bartleby começa a se converter em desilusão, quando, ao precisar do seu novo empregado em atividades que faziam parte da sua rotina de trabalho, recebe a resposta deste de um mero: ?eu prefiro não?.
A indignação era tamanha que seu assombro lhe impediu de sequer tomar qualquer atitude precipitada em relação a insubordinação deste empregado, causando-lhe um efeito inesperado de ao ouvir a sua negativa constante, a cada ordem sua com um apático e direto ?eu prefiro não?, o narrador-advogado sentia até mesmo um certo fascínio, mesclado a confusão. Afinal, como ele podia se negar a fazer algo, quando era pago exatamente para isso? Quando cada pedido do seu chefe era meramente parte das atividades que sua descrição de cargo previa?
Antes de seguir essa linha de raciocínio, gostaria de contextualizar a época em que essa história se passa.
Esse era um período em que Wall Street significava o avanço que os Estados Unidos vivenciavam, com a sua industrialização acelerando o processo de crescimento de um país com seus trens, carros e da eletricidade, em contraponto com o cenário rural, onde os dias pareciam seguir sem grandes alterações, e as famílias, para fugir desta estagnação e ter perspectivas melhores de futuro, deixavam suas raízes simples para ir com suas numerosas famílias tentar a vida nas indústrias do Norte, onde dedicariam cada gota de suor do seu rosto para trazer o sustento para a casa. Já que enriquecer mesmo, isso era algo que permaneceria nas mãos (e nos bolsos!) dos homens de negócio.
Tendo em vista o enredo da história contada por Melville, e esse contexto sócio-histórico, já podemos perceber o conjunto de disfunções aqui contadas, que são exatamente os elementos que concedem a esta trama curta todo o brilhantismo que reside por trás dessas poucas páginas, que com uma narrativa simples, que flui com muita facilidade, nos basta uma única tarde tranquila para fazer essa leitura.
Um advogado sem grandes ambições, com um escritório em Wall Street, que continua insistindo em fechar os olhos para os erros e temperamentos de seus empregados, lembrando que um sofre com sérios problemas de alcoolismo, e o outro com distúrbios gástricos que o deixam sempre de péssimo humor por um período do dia, e ainda um office boy que o pai insistiu para que trabalhasse em seu escritório, embora nem sequer tivesse idade o suficiente, e que acaba por contratar um homem que revela possuir algum tipo de transtorno psicológico (que não há como diagnosticarmos precisamente, por se tratar de um personagem ficcional), nos mostra o tamanho da desestruturação que existe nesse ambiente organizacional.
Por que esse narrador-advogado nunca demitiu seu empregado que bebia durante o horário de expediente (Turkey)? Por que ele ainda insistia em continuar com um empregado de temperamento colérico, que em suas crises entregava um trabalho desleixado (Nippers)? Por que ele aceitou a oferta de um pai para contratar um garoto de apenas doze anos para trabalhar em seu escritório, mesmo não tendo esse garoto qualquer interesse em aprender?
O perfil desse empregador, um homem sem atitudes, sem aquele famoso ?pulso firme?, se contrapõe com o perfil Bartleby, uma vez que com suas constantes recusas insubordinadas, ele é o único que escolhe e se posiciona. Mesmo que essa escolha seja um ?não fazer?.
Em um país onde a competitividade é acirrada, e desde cedo as crianças são condicionadas de que existe apenas um único lugar a se alcançar (o primeiro!), o trabalho se tornou uma obsessão, em que é preciso trabalhar cada vez mais para se ter cada vez mais, e perder o trabalho é o mesmo que perder o significado da vida, como o que ocorreu durante a Grande Depressão, onde o desespero levou a tantos americanos a cometer suicídio.
E é exatamente essa competição desenfreada que causa tantos problemas à saúde mental de uma população, que Melville vem brilhantemente denunciar, colocando exatamente um homem com distúrbios psicológicos para se rebelar contra todo um sistema e decidir pelo seu ?não-fazer?, ao invés do ?dar o sangue? (ou até mesmo a vida!) pelo seu trabalho até a exaustão emocional/psicológica que tantos males causam.
Não tenho como esconder o quanto Bartleby me tocou nesta história. Seu comportamento apático, que escolhe se isolar socialmente (e consequentemente, afetivamente!), para se perder em um mundo estático, que um dia chegará ao fim e lhe proporcionará um fim, é de tocar o coração.
Especialmente quando vemos o quanto seus modos causam tamanho estranhamento no narrador-advogado, por desconhecer o que acontece com ele, e do quanto isso acaba por se tornar mais um atraso na vida de Bartleby do que uma ajuda!
Cada ação tomada por seu chefe, na tentativa de ajudá-lo, no fundo mais o prejudicava do que servia como um estímulo. E isso só mostra o quanto somos despreparados para reconhecer e saber lidar com alguém com qualquer tipo de distúrbio ou até uma deficiência.
Não somos preparados para entender o que nos é diferente. E muito embora hoje em dia seja tão abominado o termo ?normal? ou ?normalidade?, ainda assim, o estranhamento nos faz buscar a semelhança.
Melville, neste conto, é uma resposta a essa nossa ignorância em como lidar com as diversidades da vida, e com o diferente. É uma resposta à nossa negligência à saúde mental. É um grito de objeção a essa competição desenfreada que ainda hoje adoece a população o mundo todo.
Especialmente em ambientes organizacionais (embora particularmente, eu ainda sinta o mesmo no ambiente escolar), percebo que ainda hoje não existe muito preparo para a ocorrência das famosas ?inclusões?, que no final são apenas cumpridas porque as metas que podem até ser obrigatórias, mas que também são revertidas em benefícios às empresas. Ou seja, no final, ao tentar incluir?excluímos cada vez mais.
O quanto temos ainda que aprender!
E sabe quando isso vai acontecer (na minha humilde opinião!)? Quando os estigmas à psicologia reduzir (ou até acabar), e esses profissionais possam de fato realizar os seus trabalhos, e colocar em prática seus conhecimentos, treinando mais e mais pessoas para saber lidar com a inclusão, e com todas as outras doenças emocionais que tanto nos assolam. Porque esses profissionais estão presentes nos quadros de empregados de escolas e empresas. Só não são lhes dado o devido espaço para que façam os seus trabalhos.
Em sua resistência ficcional repleta de simbolismos, Bartleby representa esse real da exclusão que não cessa de denunciar a nossa necessidade de renunciar a semelhança para começar a aceitar as diferenças.