spoiler visualizarClara3384 16/03/2024
Genial e grandioso até a última vírgula
Eu já li esse livro há semanas e ainda não tenho palavras suficientes pra descrever a experiência que é esse livro.
Nele,acompanhamos a jornada de um garoto chinês que é tirado da pobreza de sua terra natal por um professor inglês e levado pra Inglaterra com o propósito de estudar e ingressar no Real Instituto de Tradução (Babel para os íntimos),porém chegando lá,apesar de todo o esplendor da vida que a universidade oferece,ele se vê confrontado com todas as injustiças e atrocidades que o império comete contra o seu povo e tantos outros,tudo isso usando Babel como sua principal ferramenta.
Apesar de essa sinopse já nos oferecer uma história e discussão ótimas,isso é só a ponta do iceberg em comparação com todo o desenvolvimento que a autora dá a todos os aspectos da história,que ela destrincha em cada cena,personagem e plot no enredo. A forma como ela não só fala mas mostra o colonialismo em ação,as consequências grotescas para aqueles que são usados pelo sistema,a cegueira que temos ao estar dentro dele,como tudo parece tão distante da nossa realidade,as contradições que ele trás,tudo isso foi posto em reflexão pelos personagens e retomado mais tarde de forma prática para mover a história de maneira genial.
A tradução é outro elemento fundamental do livro que eu achei muito interessante,porque nunca tinha pensado muito sobre,achava que era uma coisa simples,mas a Rebeca Kuang me mostrou que eu estava completamente errada. A forma como a tradução é desenvolvida quase ao nível de uma arte aqui me surpreendeu demais e me deixou admirada e pensando nisso por dias. Ela mostra em diversos momentos e formas como a tradução é algo complexo,como exige tanta compreensão das línguas e culturas com as quais se precisa trabalhar,os dilemas que a acompanham,os propósitos para os quais pode ser usada e como realmente foi e é utilizada para influenciar e controlar.
?Portanto, o tradutor precisa ser tradutor, crítico literário e poeta ao mesmo tempo, tem que ler o original bem o suficiente para compreender todos os mecanismos subjacentes e para transmitir o significado com o máximo de precisão possível, em seguida reorganizar o significado traduzido em uma estrutura esteticamente agradável na língua de chegada que, em seu julgamento, corresponda ao original. O poeta corre livre pelas pradarias. O tradutor dança algemado.?
Os personagens são outro ponto que faz você se apaixonar pelo livro,todos são únicos,com suas próprias características,forças,fraquezas e visões de mundo,tudo isso moldado pelas experiências que eles viveram torna-os realistas ao ponto de ser difícil acreditar que eles não existiram. O Robin,principalmente. Ele,que a princípio não tem muita personalidade,se desenvolve gradualmente,primeiro como o jovem estudante pacifico e obediente,depois alguém dividido entre o conforto e aquilo que ele sabe que é certo e finalmente,um revolucionário agressivo com nada além de uma causa pela qual lutar. Ele tem erros,acertos,desavenças e muitos conflitos internos que o tornam alguém com quem é muito fácil você se identificar,suas ações apesar de nem sempre serem certas,são compreensíveis e o tornam ainda mais humano. Por volta da metade do livro eu já estava totalmente apaixonada nele,toda vez que ele fazia uma coisa muito doida ou alguma coisa acontecia com ele,eu surtava. Como eu sofri por ele na segunda metade do livro,com o tanto de coisa que aconteceu eu sofria por mim e por ele,e todo o meu respeito pra Rebeca Kuang,porque ô mulher pra saber descrever dor,tristeza e depressão e que me fez chorar horrores.
Sobre os outros personagens,preciso falar sobre Ramy,Victorie e Griffin. Nada mais justo que começar pelo Ramy,que foi o primeiro a aparecer (e o primeiro a morrer). Ele foi um personagem brilhante,carismático e decidido,que roubou meu coração logo na primeira aparição. Sua ousadia e carisma e sua ligação com o Robin já eram apaixonantes na parte acadêmica do livro,mas foi na revolução que ele realmente alcançou todo o seu brilho. Seu interlúdio me fez ter um novo olhar sobre ele e admira-lo ainda mais. Sua morte foi um novo ponto de virada no livro e foi injustamente rápida e sem sentido,além de me fazer chorar horrores,mas sei que essa era a intenção da R. F. Kuang em todas as mortes,mostrar a realidade das mortes em uma revolução ,que não são teatrais e dramáticas,são rápidas e sem tempo ou liberdade para serem honradas. Digo o mesmo sobre a morte do Griffin,que diga-se de passagem,era um dos meus favoritos junto com o Robin e merecia muito mais. O Griffin passou boa parte do livro sendo a personificação da revolução para o Robin e acho que esse continuou sendo sendo o papel dele na cabeça do Robin,sempre impulsionando-o a fazer o que fosse necessário. Apesar disso,acho que toda a sua trajetória merecia um maior desenvolvimento para além das entrelinhas e notas de rodapé,sua história,pelo pouco que vimos,foi trágica do início ao fim,sendo arrancado de seu país antes de formar vínculos suficientes com sua cultura,depois sendo culpado e menosprezado por isso por um pai que nunca assumiu ser seu pai e o tratava com frieza,tudo somado aos dramas e intrigas da universidade e ao racismo sofrido diariamente aparentemente moldaram sua visão crítica do mundo e o motivaram a se juntar à revolução. Ele é um personagem carismático à sua própria maneira e sua visão sobre revolução e violência é interessante e válida. Ainda tenho fé que a autora um dia desenvolva a história dele em um possível conto ou prequell.
A Victorie foi uma das surpresas que eu tenho certeza que a autora plantou de propósito na história,a princípio ela é a que menos fala do grupo,sendo sempre a mediadora dos conflitos e sem muito destaque. Isso muda a partir do momento em que é revelado que ela é parte da Hermes,ali um novo lado da Victorie é revelado,um lado que é convicto de seus objetivos e lealdades e vai fazer o que for necessário pela revolução. Apesar disso,a verdadeira força dela só é revelada após as mortes do Ramy e do Griffin,quando só sobram ela e o Robin,e ela se torna o principal ponto de apoio dele e vice versa. É muito maneiro a forma como a autora mostra essa força dela sem mudar sua personalidade já definida. Eu amei os momentos dela e do Robin líderes revolucionários e o peso que esses momentos têm. A decisão final dela me surpreendeu muito,mas me deu esperança de algum dia saber que fim levou esse mundo após a queda da torre.
Por último mas com certeza não menos importante,quero comentar sobre o final e os aspectos práticos que a revolução teve. Eu amei como tudo foi feito,desde os momentos na Velha Biblioteca (apesar dessa parte ter destroçado meu coraçãozinho),até a grandiosa tomada da torre e a sua queda. Eu adorei o ar frenético que as coisas tomam depois que a Biblioteca é invadida,fiquei totalmente apavorada com a falta de resposta de outros membros da sociedade,com a possibilidade de eles estarem totalmente sozinhos. Foi realmente cruel da parte da Rebeca nos dar o sentimento de acolhimento,apoio e esperança das pessoas da Biblioteca só pra tirá-los assim. A tomada da torre foi,em essência,um ato de total desespero de pessoas que não tinham mais nada a perder e não aguentavam a ideia de tudo aquilo ter sido em vão,que não suportavam mais a realidade como ela era para eles e seus povos. O tempo deles lá dentro junto com os professores e os outros alunos,as guerrilhas e as decisões moralmente duvidosas que são tomadas lá me lembraram o filme ?Sociedade da neve? principalmente pela frase repetida no filme:?quem fomos na montanha? que fala muito sobre como situações extremas levam as pessoas à extremos,emocionais e em suas ações também ,da mesma forma no livro,eles deixam um diário pra que as pessoas saibam quem eles realmente foram lá,pelo que eles estavam lutando e porque fizeram o que fizeram. Sobre o desfecho,desde a metade do livro eu já esperava que o Robin fosse morrer e conforme o fim foi se aproximando isso foi virando uma certeza,mas a forma como aconteceu eu não tinha sequer cogitado. Assim como o Robin,eu já havia fantasiado que o melhor que poderia acontecer seria se Babel acabasse mas no meio do turbilhão de acontecimentos do fim do livro,eu não esperava que fosse realmente acontecer e a forma que foi sugerido,na cena entre Robin e Victorie ,acabou comigo. A partir daí,tudo que diz respeito a isso tem um tom semelhante a essa cena,uma mistura de delicadeza com uma tristeza e um cansaço aterradores,o medo somado a uma certa expectativa pelo que está por vir e a possibilidade aterrorizante,para nós leitores pelo menos,de que tudo isso seja em vão. É desnecessário dizer que o último capítulo do Robin me destruiu completamente e me deixou em estado de negação pelo resto do dia. Aquele momento de alegria e possibilidade do primeiro dia dele em Oxford,antes daquele se tornar um lugar maculado,aquela expectativa do que poderia ter sido entre ele e o Ramy,tudo fazendo paralelo com a total ausência do presente onde Oxford é um lugar onde ele é perseguido,que foi construído as custas da exploração do seu povo e o Ramy morreu sem que eles nunca tenham tido uma chance,se soma ao pensamento final sobre a mãe dele e a percepção de que esse tempo todo,nós nunca soubemos o nome verdadeiro dele e tudo junto é como uma punhalada no coração do leitor.
O último capítulo,pelo menos trás uma pitada mínima de esperança,de que tudo aquilo não foi em vão,que há mais rebeldes por aí,mais pessoas dispostas a lutar pela justiça e que a queda de Babel realmente tenha o tanto de impacto que o Griffin e o Robin acreditavam que teria.
Acho que o tamanho da resenha fala por si só,mas caso não tenha ficado claro,esse é o melhor livro que já li na vida,ele faz tudo que se propõe com a máxima excelência e todos deveriam lê-lo.