Procyon 16/11/2021
O Continente ? Resenha:
?Uma geração vai, e outra geração vem;
porém a terra para sempre permanece.
E nasce o Sol, e põe-se o Sol,
e volta ao seu lugar donde nasceu.
O vento vai para o sul, e faz o seu giro
para o norte; continuamente vai girando
o vento, e volta fazendo seus circuitos.?
- Eclesiastes I, 4-6
A mais famosa saga da literatura brasileira, O tempo e o vento, inicia-se por este livro, O continente. O romance histórico percorre mais de um século da história do Estado do Rio Grande do Sul, bem como do Brasil, mas também acompanhando a história da formação da família Terra Cambará. Vê-se constantes indas e vindas, alternando-se entre capítulos do presente e do passado; o conflito entre as família Terra Cambará e a família Amaral pelo controle do poder político, juntamente com a fundação da fictícia vila de Santa Fé (elevada a povoado, e, posteriormente, a cidade); e os conflitos históricos, tais como as Missões Jesuíticas ? ao demonstrar o genocídio indígena, na Guerra Guaranítica, ocasionada pelo Tratado de Madrid, e as invasões castelhanas ?, a Revolução Farroupilha, a Guerra do Paraguai e, por fim, a Revolução Federalista.
Nesta verdadeira epopeia brasileira, vemos o nascimento de uma nação através da formação da família Terra Cambará, que, por sua vez, representa todas as famílias que ajudaram, de alguma maneira, na formação do Estado do Rio Grande do Sul, bem como do Brasil. Através de uma narrativa fascinante, Erico Verissimo brilhantemente narra uma trama fictícia, mas com uma rígida base e ambientação histórica, perpassando por diversos momentos importantes da história do país. Com seu teor pacifista e antiguerras, muito retratado no papel da mulher e de como estás moldaram o curso histórico de uma nação até então escravista e retrógrada. Verissimo traz aqui, uma leitura riquíssima, repleta de personagens interessantíssimos, como o enigmático e misterioso Pedro Missioneiro; a corajosa Ana Terra ? uma das personagens mais importantes desta obra ?; o intrépido e sedutor Capitão Rodrigo Severo Cambará; e a tenaz Bibiana Terra. Há uma excelência na caracterização e relação destes personagens com o ambiente espacial e temporal, de modo que se torna tremendamente fácil, ao leitor, imaginar e eternizar, vivos, esses personagens e a terra donde vieram.
Aqui Erico Verissimo deixa clarividente seu modernismo, a Fase de Consolidação, que fez parte da geração de 30, trazendo os temas nacionais e regionais, focando-se muito no âmbito social, cultural, econômico ? e principalmente histórico ?, a fim de causar uma concretização e afirmação dos novos valores modernos.
Vê-se, aqui, a história da junção de duas famílias, dando enfoque à família Terra, que, na primeira fase das Missões, fora uma das famílias, descendentes de índios e portugueses, que vieram de São Paulo, e que começaram a povoar essa região. Com o nome proposital e metafórico, a família Terra indica o embrião, a raiz e história, de uma família e de um Estado. A ironia que Verissimo nos traz ao apresentar a relação entre os Terra com Pedro Missioneiro, onde os Terra possuem um preconceito enraizado pelo índio, mas este mesmo índio, por sua vez, ao contrário da família Terra, sabe ler e escrever; sabe das lendas que habitam aquelas terras; sabe da arte, sobre a escultura e a música, principalmente.
Em meio aos encontros e desencontros do destino, vemos personagens extremamente fortes, como Bibiana Terra, que é a personagem que conduz a história até o final, e que herda o arquétipo de Ana Terra, sua avó. A coragem de Ana Terra, em ficar e proteger a cunhada e o restante da família, através de uma cena trágica; uma escolha, de sair dessa região procurando outro local para se estabelecer, neste caso, rumando para a vila de Santa Fé, e lá selar o destino de seus descendentes. Seu filho, Pedro Terra, herdando o nome do pai, acaba também sendo uma junção entre as características deste com as de seu avô, Maneco Terra, tornando-se uma pessoa extremamente reservada e triste, mas também teimoso ? que, por sua vez, acaba refletido em seu filho, Juvenal Terra, e em seu neto, Florêncio Terra.
Em complemento, surge o Capitão Rodrigo, obstinado, que acaba desposando Bibiana Terra, filha de Pedro Terra, onde constituem a família Cambará, que cresce, gera descendência e acaba conquistando o poder político e econômico da região. Nesse sentido é que se dá a parte não velocista desta obra, mostrando as lutas e seus sacrifícios, sintomáticas da vida breve de quase todas as figuras masculinas apresentadas aqui, tais como Sepé Tiaraju, Pedro Missioneiro, Rodrigo e Bolívar Cambará, entonando, sob o prisma das mulheres, as consequências que essas lutas trouxeram, abortando a felicidade e prosperidade dessas famílias, em meio às bravuras e honrarias dos gaúchos.
O acaso é também bem explorado, como já evidenciado, elevando personagens fortes e encantadores, juntamente trazendo questões e discussões interessantes entre esses mesmos personagens ? como o Dr. Carl Winter, o médico e imigrante alemão, com o pe. Romano, ou o Capitão Rodrigo com o pe. Lara. Essas relações são muito bem escritas, que ajuda, de todas as formas a impulsionar a leitura petrificante que é O continente (e de nenhuma maneira este livro se torna arrastado).
Por último há Luzia Silva, que faz alusão a teiniaguá ? a lenda da princesa moura que foi transformada em lagartixa pelo Diabo Vermelho dos índios, se transformando, também em uma bruxa que leva desgraça aos homens ?, neta de Aguinaldo Silva, o negociante nordestino, que compra as terras da família Terra, e, lá, constrói o Sobrado. Luzia, no entanto, casa-se com Bolívar Cambará, filho de Bibiana, que, assim como o pai, caba sofrendo do destino trágico que os homens tinham naqueles tempos (?homem macho não morre em cama?, como diz o Capitão).
Em suma, O continente é uma excepcional introdução a esta saga, marcada também por simbolismos, como pelo punhal de Pedro Missioneiro, passado entre as gerações da família Terra Cambará, até chegarem aos filhos de Licurgo, filho de Bolívar e Luzia, que se torna coronel na Revolução Federalista. Voltando aos saltos temporais, eles são bem alternados e possuem uma lógica bem estabelecida. O tempo aqui é presente.
Li esta edição econômica, da Companhia das Letras, e a leitura foi bem proveitosa. O continente é um livro extraordinário e que espero ver e rever essa história tão rica.
?Em certos dias em que o minuano soprava, enrolada num xale e pedalando na roca, Bibiana pensava na avó, que costumava dizer-lhe que o destino das mulheres da família era fiar, chorar e esperar.?