Marina 03/01/2022Carbono Alterado se passa em um futuro distópico, uma época distante da nossa, em que a humanidade iniciou um processo de colonização de outros planetas e descobriu uma nova tecnologia capaz de driblar a morte: o carbono alterado. Ao nascer, todos os seres humanos recebem um chip que será instalado na nuca, esse chip armazena a consciência de cada um: seus pensamentos, sentimentos, memórias, emoções, enfim... tudo que a pessoa vive desde o momento em que o chip é implantado até o momento da sua morte. Quando isso acontece, ou seja, quando uma pessoa "morre", o chip pode ser retirado do corpo antigo e passado para um corpo novo — no livro, os corpos são chamados de "capa". A Morte Real, chamada assim mesmo, com letras maiúsculas, só acontece quando o chip é destruído ou corrompido, impossibilitando o upload da consciência para uma nova capa. Como é de se imaginar, o sistema possui várias implicações sociais, em que os mais ricos são mais favorecidos com capas e recursos infinitamente melhores, e os mais pobres, embora consigam manter seu chip intacto no decorrer de sua vida, dependem dos recursos financeiros de seus familiares para comprar uma capa nova e voltar a vida, e por isso ficam armazenados por tempo indeterminado em um sistema próprio para isso. Dizendo de forma direta, os ricos vivem eternamente, enquanto os pobres "morrem" por falta de capa para todo mundo.
Esse início já mostra que Carbono Alterado foi uma leitura que eu curti bastante, principalmente pelas implicações sociais do livro. Particularmente acho incrível quando um autor cria um universo completamente novo, e esse universo é atravessado por questões políticas e sociais, tais como nossas sociedades atualmente. Para mim isso torna a leitura mais rica e interessante, além do universo se tornar mais verossímil.
Apesar disso, Carbono Alterado tem um início um pouco lento, em que as informações sobre o universo do livro e sobre os personagens são oferecidas de forma muito devagar. A história se concentra na trajetória de Takeshi Kovacs, o protagonista, que é contratado para investigar o suicídio de um homem chamado Bancroft. O que torna tudo mais intrigante é que quem contratou Takeshi para investir esse suicídio foi o próprio Bancroft. Confuso? Eu explico: Bancroft é um homem rico, e como eu falei, os ricos possuem recursos infinitamente melhores que as pessoas comuns. Sendo assim, Bancroft é um homem de mais de 300 anos de idade, que possui capital suficiente para tornar sua Morte Real quase impossível. Seu dinheiro possibilita que ele compre sistemas de backup de consciência, que são realizados diariamente, de forma automática, todos os dias; Assim, mesmo que seu chip seja destruído, ele pode ser novamente re-encapado, pois sua consciência está armazenada em diversos pontos diferentes, incluído na nuvem, o que torna praticamente impossível que ele morra. Justamente por isso que Bancroft desconfia que seu suicídio na verdade foi um assassinato, são poucas as pessoas com acesso a esse tipo de recurso, e também são poucas as que sabem que isso existe.
Devo ser sincera e dizer que o suicídio de Bancroft foi o que me deixou menos curiosa, no livro todo. Apesar da ansiedade em resolver o mistério, eu estava mais curiosa a respeito da realidade do livro e de toda a tecnologia criada do que no enredo "verdadeiro" do livro. Nosso protagonista é um homem que veio de outro planeta, colonizado por japoneses, chamado Mundo De Harlan. Por vir de um mundo mais novo, e consequentemente menos conservador, Kovacs sente um choque cultural imenso ao chegar na Terra: seja com os católicos (os religiosos que discordam a política do carbono alterado e é claro, vão ter várias implicações na investigação que ele está fazendo), seja com os Matusas, como são chamados as pessoas que vivem mais de 100 anos. Aqui, um ponto interessante: existe um ódio de classe imenso em relação aos Matusas, e com toda razão. Por viverem muito tempo, possuírem muitos recursos e estarem na Terra há gerações, vendo impérios e civilizações caírem, os Matusas veem a si mesmo como deuses, acima do bem e do mal, ricos o suficiente para viverem centenas de anos, poderosos o suficiente para tirarem qualquer um de seu caminho. Nesse ponto, acredito que nem preciso dizer de que lado estou, mas só pra deixar claro, estou do lado que odeia os Matusas. Assim como no nosso mundo, a política do carbono alterado foi feita por e para privilegiar os mais ricos, em que as pessoas ricas vão ficando cada vez mais ricas (e mais vivas) enquanto os pobres continuam pobres e morrem cada vez mais. Bom xibom, xibom, bombom.
Carbono Alterado é um livro cheio de detalhes, e não é a toa que virou uma série da Netflix. O universo do livro foi muito bem construído, e todas as pontas soltas são fechadas. Os personagens também possuem certo carisma e personalidade que te envolvem. Kovacs, o protagonista, embora tenha a frieza de um psicopata, desperta empatia em quem está lendo. Fiquei pensando em todas as Mortes Reais que ele presenciou, e no quanto uma Morte Real afetaria uma pessoa vivendo em um futuro como esse. Perder uma pessoa que poderia ser re-encapada é uma perda, até certo ponto, temporária. Mas perder alguém por morte real é diferente: se no mundo real alguns se consolam com a ideia de ver seus entes queridos de novo, no pós-morte, no livro essa ideia não existe, uma vez que a pessoa não pensa que ela própria irá sofrer de Morte Real. Mortes Reais são eventos trágicos e raros, que devem ser evitados a todo custo, estando sujeitos somente aqueles que se envolvem em situações de risco. O que foi perdido se perdeu para sempre. Não existe nenhum meio de recuperar um cartucho destruído. É a morte como a conhecemos.
Por fim, Carbono Alterado foi uma leitura intrigante. Não só pelo mistério, mas por todo o universo criado pelo autor. Todos os detalhes foram bem pensados, e o mais interessante é que, apesar da história se passar no futuro, com uma tecnologia capaz de revolucionar a vida como a conhecemos, percebemos que (ao menos na imaginação do autor) a vida na Terra não mudou muito: opressão, desigualdades, luta de classes, gangues, traficantes, corrupção... tudo que existe e tem de pior no nosso cenário atual permaneceu como ponto central no universo criado pelo autor. Espero encontrar algumas facetas mais otimistas nos próximos volumes da trilogia
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