Leonardo.H.Lopes 27/12/2023A Versão Mexicana do Limbo DantescoEstou cada vez mais convencido de que o enredo de todo grandioso livro é sempre simples. Deste grande clássico mexicano contemporâneo não poderia ser diferente. No leito de morte de sua mãe, Juan Preciado faz uma promessa: jura ir à Comala, local onde vivia seu pai, um tal de Pedro Páramo. Rumando para o vilarejo, o protagonista encontra um senhor que o informa que, além de Pedro Páramo já se encontrar, há muito tempo, morto, o povoado está abandonado. Entretanto, este mesmo homem, que se chama Abúndio e que o protagonista descobre que também é filho de Pedro Páramo, o indica uma estalagem em Comala para se hospedar.
Chegando à vila, Juan Preciado descobre, à primeira vista, um local aparentemente desolado e solitário, mas que aos poucos se mostra intensamente habitado pelos fantasmas das pessoas que ali viveram. A triste história de Comala e de Pedro Páramo vai se abrindo para o leitor através de uma miríade de vozes e personagens, os quais remontam, em retalhos, suas memórias, construindo uma paisagem única que colocou este livro entre os meus preferidos.
Se há dois adjetivos que ilustram bem a obra de Rulfo é “polifônico” e “silencioso”. Magistralmente, as várias vozes que o protagonista e leitor ouvem, muitas das quais nem sequer conseguimos identificar de quem são, e que permeiam integralmente o texto, às vezes interrompendo parágrafos, esporadicamente se ligando com o “presente” narrativo e muitas vezes fazendo sentido apenas páginas à frente, formam uma dança de vozes que funcionam como peças de um quebra-cabeça que o leitor atento vai ordenando de forma cronológica. Ao mesmo tempo em que ouvimos os sussurros daquelas pessoas que já morreram, percebemos o quão silencioso é o texto, como se, ao mesmo tempo que aquelas almas possuem tudo para contar e não precisam esconder sua essência, já que estão mortos, não possuem mais nada para contar, afinal o passado não pode nunca ser mudado.
Há muitas chaves de interpretação para o que Comala seria. Lendo o texto, não pude deixar de lembrar do Limbo em A Divina Comédia. No poema de Dante, o Limbo é uma espécie de antecâmara do inferno e aqueles que ali vivem foram virtuosos em vida, motivo pelo qual não estão no inferno em sentido estrito. Entretanto, por terem vivido antes de Jesus Cristo e não terem sido batizados, não poderão jamais adentrar ao Paraíso e também não podem habitar o Purgatório, já que o Purgatório é apenas uma transição e, cedo ou tarde, aquelas almas que se purgam ascenderão aos céus. Os que estão no Limbo não sofrem castigos como os condenados à danação eterna, mas vivem naqueles bosques melancólicos ansiando eternamente, mesmo sabendo que nunca alcançarão a graça divina. Assim, para mim, Comala é o Limbo de seus habitantes.
Nesse sentido, como toda análise deve partir do texto para fora, há elementos no texto de Pedro Páramo que apuraram em mim essa percepção de ser Comala o espelho mexicano do Limbo de Dante. Em meio àquelas vozes, ficamos sabendo que o Padre Rentería, pároco de Comala, vive em pecado. Ao ir se confessar com um pároco de uma cidade vizinha, este se negou-lhe a absolvição, o advertiu de que não poderia continuar consagrando os outros até se purificar e o aconselhou a confessar-se para um superior na hierarquia da Igreja. Contudo, com medo de perder seu posto e ser excomungado, Padre Rentería se recusa a tal, permanecendo em pecado.
Se o Padre que dá a comunhão, celebra as missas, guia seus fiéis, realiza seus batizados, ouve suas confissões e concede a extrema unção na ora de sua morte não o pode fazer genuinamente porque vive em pecado e se recusa veementemente à purificação, todos aqueles que vivem em Comala também não se purificam verdadeiramente, já que as bênçãos, batismos, confissões, rezas e unções advindas do Padre rentería estão maculadas pelo pecado e não possuem validade. Devemos nos ater ao fato de que, para a doutrina tradicional Católica, não há um relacionamento direto entre Deus e o fiel, mas toda a salvação depende uma série de sacramentos e boas ações que são intermediados pela Igreja, que mostra ao fiel o caminho verdadeiro do qual Dante se afastou e precisou atravessar o submundo para reencontrar esse caminho. Aliás, um dos pontos que levou à Reforma Protestante foi justamente este, já que uma das pautas do movimento foi a sustentação de que as pessoas deveriam ter um relacionamento direto com Deus, assumindo a responsabilidade pessoal pela sua fé e pela sua salvação.
Dessa forma, ao morrerem sem os sacramentos que eram realizados por alguém que não poderia fazê-los, os moradores de Comala não podem ir jamais para o Paraíso e nem para o Purgatório, já que este é uma via de punição para se ingressar ao Paraíso. Também não lhes cabe o Inferno, já que percebemos que as almas, excetuando o próprio Pedro Páramo, seu filho Miguel, Padre Rentería e alguns outros, através do que nos contam, era simples e não possuíam responsabilidade por não terem seguido a doutrina da fé, sendo que muitos morreram de fome por causa da atitude de Pedro Páramo de encerrar as atividades da fazenda Media Luna, núcleo sob o qual a cidade orbitava e se sustentava, devido à morte de Susana, sua amada, situação na qual o vilarejo não guardou luto. Resta, pois, às almas de Comala a melancolia e o silêncio do Limbo, o eterno vagar pela vila repetindo as histórias de suas vidas infinitamente, sem sofrimento ou ardência na danação perpétua, mas condenados apenas a andarilhar por onde viveram e a contar o que passaram.
Outrossim, o próprio Caminho para Comala, traçado por Juan Preciado quando iniciou o cumprimento de sua promessa à mãe morta, é uma descida íngreme e o protagonista percebe que quanto mais ele anda, mais esquenta. Ao se encontrar com Abúndio na estrada, este o diz que Comala “fica em cima das brasas da terra, bem na boca do Inferno”, ou seja, a própria antecâmara do Abismo. Mais para frente, descobrimos que Abúndio era quem trazia o correio à Comala e contava como “andavam as coisas do outro lado do mundo”, segundo disse ao protagonista a dona da estalagem onde ele se hospedou. Não seria Abundio uma ponte entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, uma espécie de médium trazendo e levando as notícias de nosso plano ao Limbo? Não teria esse mensageiro conduzido Juan Preciado, já morto, ao paraíso dos fantasmas para que também cumprisse pena perpétua na Comala limbólica?
Como disse, há muitas chaves interpretativas e muitas camadas textuais que, com certeza, mostrarão novas facetas a cada releitura perspicaz. Representante também do genuíno gênero latino americano do realismo fantástico, Pedro Páramo merece o pedestal que ocupa na literatura mundial e, com certeza, está fadado a existir pela eternidade tal como Comala e seus moradores, estilhaçados e eternizados no texto de Juan Rulfo.