Gabriela2968 10/09/2016Como me notei Estúpido A obra de Martin Page é uma produção que pode enganar leitores desavisados por sua aparente clareza lingüística e curta extensão narrativa, levando à falsa idéia de que se trata de um livro de cunho simples. Como me tornei Estúpido, no entanto, é uma composição complexa por guardar indagações sociais e existenciais de grande magnitude, que, como em grandes obras, tende a incomodar intimamente o leitor. Outrossim, é o fato de que o autor utiliza um estilo em certa medida “seco” em seu texto, isto é, tendendo à objetividade (impessoal), o que acaba tanto agravando o tom cômico-sarcástico pelo absurdo das situações narradas sem estranheza, quanto caracterizando um estilo lapidado.
Com respeito ao ethos discursivo, aos personagens e ao drama individual, é possível enxergar uma intertextualidade com obras de autores célebres como Dostoiévski, que fez a colocação de que a consciência é uma doença incurável. Em Memórias do subsolo, por exemplo, este, tematiza um sujeito extremamente pessimista e que se enxerga no limbo da sociedade, sofrendo por considerar sua personalidade inadaptável ao mundo, mas por razoes distintas do herói de Como me tornei Estúpido.
O livro de Page, trata da história de Antoine, um intelectual de 25 anos que chega à conclusão de que a estupidez é uma dádiva, visto que o pensador sofre por ter consciência do absurdo da situação atual da sociedade, que, por sua vez, encontra-se alienada, massificada, desigual, fútil e bestificada. Partindo desta constatação ele procura formas de se distanciar da racionalidade que o levava a toda sorte de indagações que convergiam em frustrações devido ao nível de degenerescência da humanidade, e assim ele toma sua primeira resolução drástica: tornar-se alcoólatra.
Para consolidação de seu intento, Antoine aluga diversos livros sobre bebidas na biblioteca, e procura um “orientador” para sua iniciação alcoólica, encontrando-o como última fonte, num bar. O antiquado das situações as torna cômicas, e seus resultados mais ainda. Devido à sua alta sensibilidade fisiológica o personagem entra em coma alcoólico na metade de seu primeiro copo de cerveja. Fracassado o primeiro plano, Antoine decide se livrar de sua consciência junto com a própria vida, e para isso passa a freqüentar um curso de suicídio, que eleva o grau de comicidade por tornar prosaica a tragédia. Após a primeira aula do curso, o personagem desiste de sua idéia e procura conseguir uma lobotomia. Seu amigo médico pediatra recusa e lhe receita antidepressivos, que o mantém em um falso estado de satisfação, que é um grande passo para a concretização da “estupidificação”.
Antoine, porém, só consegue atingir a estupidez pretendida quando consegue um emprego na empresa de um ex colega de classe, que é um estereótipo do tido como “nascido para o sucesso”, a essência de um empresário de revolução industrial, preocupado com as impressões que causa e com o próprio lucro e luxo, em suma, um magnata.
Por golpes de sorte o protagonista consegue prosperar na empresa e ganhar muito dinheiro, passando a gastá-lo compulsivamente, até mesmo comprando um carro sem saber dirigi-lo, mas sob uma ótica posterior á uma discussão, também é possível inferir que houve uma ludibriação e que o personagem pode ter sido usado como responsável por um esquema mais escuso, visto que mais tarde ele chega a ser preso.
Aqui cabe enfatizar que antes do processo de mudança de personalidade, Antoine procurava ser humanitário e consumista ao mínimo possível, e, além disso, se interessava por assuntos sem alta demanda de aplicação prática, como por exemplo, o domínio do idioma aramaico, que pode ser interpretado como manifestação de intelectualidade por ser desinteressado de compensações financeiras, curriculares etc., partindo da própria curiosidade e perspectiva. Neste ponto, em sua fase de dissipação da fortuna, encontramos nosso herói na excelência de seu estado de degradação, tão contraditório aos seus valores iniciais quanto a colocação da antítese “excelência da degradação”.
Embora tenha atingido o auge da estupidez, o personagem não perde totalmente sua essência, sendo “assombrado” numa espécie de paranóia pela própria consciência, e por conseguinte aumentando cada vez mais a dosagem dos remédios, até que seus amigos, tão excêntricos quanto o Antoine do início da história, procuram resgatá-lo em meio ao mundo que ele decidiu integrar.
A narrativa choca por expor pontos que as pessoas assumem como intocáveis, como a consideração do personagem núcleo de que ser inteligente é uma patologia extremamente sofrível, enquanto que parecer inteligente valendo-se de linguagem floreada ou quaisquer outros recursos que não condigam com a postura mental do individuo é algo bastante confortável e engrandecedor do ego frente a pessoas que, em geral não identificam a falsidade da situação e tampouco se incomodam com ela. Subtende-se a idéia de que a inteligência parte principalmente da compreensão e visão crítica de mundo do que do domínio de quaisquer assuntos que estejam em alta, ou seja, ela está mais atrelada ao questionar do que ao dominar, está inserida também na capacidade de percepção.
O livro não tece críticas somente à falsa inteligência, mas também á sociedade do acúmulo e da pressa, à pessoa que não se enxerga enquanto indivíduo, ao indivíduo que não nota sua inserção no coletivo, ao coletivo que não questiona a si mesmo e de forma geral, a apatia inerte de cada componente social que não questiona seu estar no mundo ou não se posiciona perante isso.
Pode-se também destacar o fato de que embora Antoine no começo da narrativa fosse dotado de consciência com relação a exploração de pessoas e outros aspectos característicos de uma retidão de caráter, ele também comete pequenas infrações que são justificadas paradoxalmente pela sua conduta condizente com seus princípios, que não o permite acumular riqueza na sociedade capitalista, ou seja, ele rouba livros "aos poucos" e não paga o aluguel de seu apartamento por não possuir recursos por que se recusa a aceitar um sistema desigual que desrespeite os direitos de quaisquer seres humanos. Isso nos leva a um grande paradigma sobre o real sentido das coisas e das nossas ações e sobre a eterna contraditoriedade do homem.
Apesar da comicidade que confere um refinado tom satírico e duramente crítico, o autor, em certos pontos pode fazer entender que somente um tipo específico de pessoas estariam inseridos no núcleo de inteligentes/intelectuais, quando na verdade, estes, os inteligentes, seriam os que se colocariam em oposição a qualquer tendência absurda ou precipitada que surgisse, por mais adesão populacional que tivesse, basicamente seria aquele que reflete e solidifica opiniões com embasamento cientifico/observacional, independentemente do efeito manada.
É uma leitura leve e profunda, e a atualidade do livro é desnorteadora, assim como a aplicação de sua temática em muitos âmbitos, o que o torna uma obra global e extremamente rica para o emprego de analogias. Considerando que a literatura (na maioria das vezes) tem como objetivo cutucar as feridas que fingimos não perceber e promover a identificação do leitor com os personagens fomentando a empatia, a visualização de problemas, o autoconhecimento e a auto-crítica, ao final da leitura fica o convite à reflexão sobre a própria vida: o que significa o seu estar no mundo? Qual é o seu papel social? Quais são os seus valores? Até onde vai o seu nível de acomodação? O que você almeja? O que te descontenta? Você realmente é inteligente? Seria a estupidez uma dádiva?