Lodir 20/11/2011
Esqueça “Dragões de Éter”. Se você já leu a saga, não espere algo parecido aqui. O Raphael Draccon que se apresenta em “Espíritos de Gelo”, o seu primeiro fora da série, é quase outro Draccon. O novo livro, lançado em maio em Portugal e que chega só agora ao Brasil, é quase o oposto da série que tornou o escritor um sucesso de público. Enquanto “Dragões” é doce, inocente e infantil, este novo livro é pânico, sexo e violência. É bem mais sujo, no bom sentido do termo. Enquanto “Dragões” é fantasia narrada em terceira pessoa, “Espíritos” se aproxima mais da realidade, mostrando em primeira pessoa o drama de um cara comum, com sua namorada, o pai e a herança deixada após sua morte.
Na trama, um homem acorda acorrentado em uma banheira. Ele está sem um rim. Três homens mal encarados, com pinta de roqueiros, querem saber o que aconteceu e como ele foi parar ali. O problema é que ele não sabe, já que não se lembra de nada. Eles passam a espancá-lo até que ele conte algo e, de fato, aos poucos o sujeito começa a reviver os seus últimos dias e a recordar. Assim, o leitor acompanha suas tragédias a partir de uma frustrada tentativa de suicídio até aquele ponto. Os capítulos, curtos, se alternam entre a conversa do homem com seus torturadores e os flashbacks das lembranças.
O livro é muitas coisas ao mesmo tempo. Há um pouco de romance, mas quase nada. O protagonista se evolve com uma seita secreta, que pratica rituais sexuais com objetivo espiritual. Essa parte proporciona um dos momentos mais “animados” do livro, com relatos chocantes de tão fiéis e detalhados das cenas de sexo (principalmente para quem estava acostumado com “Dragões”). Draccon consegue expressar bem as dúvidas do personagem sobre o significado daquilo e todo o preconceito que cerca a seita, algo que certamente está se passando na cabeça do leitor. Dessa forma, além das referencias óbvias ao terror, é possível perceber uma pitada de Dan Brown e até Paulo Coelho, principalmente de “O Aleph”, último do mago, ainda que possa ser apenas uma coincidência.
Assim como em “Dragões”, o ponto alto de Draccon, acima de tudo, continua sendo a sua excelente narrativa, ainda que em parâmetros diferentes. Claro, há algumas semelhanças aqui: as descrições leves e recheadas de metáforas, que aparecem em quase todos os parágrafos. Raphael as utiliza para descrever tudo. Dessa vez, ele emprega a primeira pessoa e torna a narração mais próxima do leitor, descrevendo belamente todas as passagens e sentimentos que elas causam ao protagonista, assim como a relação dele com os outros personagens e seus conflitos. O personagem conta sua vida em poucas páginas, e é possível sentir a mesma empatia que se experimenta ao conhecer uma pessoa e ouvir sua história pela primeira vez.
Uma das melhores coisas são as referências à cultura pop. Atuais, estas citações nos levam a filmes, livros, álbuns e outras coisas do tipo. Mesmo diante de uma tortura, os personagens conseguem provocar diálogos interessantes, dignos de nota, como a influência cultural nos Beatles ou o significado diabólico de algumas capas de discos de rock. O excelente final do livro me pegou de surpresa, pois é daqueles inesperados que, quando acontece, deixa o leitor embasbacado. Isso, claro, é sempre muito bom, já que surpreender é algo difícil, mas bem-vindo.
O ponto baixo, no entanto, não é o livro em si. O lançamento de “Espíritos de Gelo” no Brasil deixou muito a desejar. Tratando-se de um romance que já estava circulando lá fora, e de um autor que já tem um considerável sucesso, merecia mais. Por incrível que pareça, no momento em que eu já estava com o exemplar em mãos, não havia nenhuma referência sequer a ele no site oficial da editora, a Leya. É como se ele não existisse. O site do autor trazia poucas informações, quase nada. A venda está acontecendo antecipadamente no site Submarino, mas isso não está sendo muito divulgado, e quem está fazendo a maior parte é a própria loja. Ao entrar para realizar a compra, o livro aparece com uma capa, mas o exemplar recebido veio com outra. Não há na internet imagem dessa capa, o que me levou a utilizar a capa misteriosa do site para ilustrar essa resenha. Desorganização. Enquanto isso, a Leya está empolgadíssima divulgando a série Guerra dos Tronos, e já anunciou até mesmo os próximos dois volumes, incluindo a capa de um deles. Parece ter se esquecido do livro que já está na praça, e que deveria ter preferência. Isso explica porque há tão poucos autores nacionais da lista dos mais vendidos, principalmente do gênero fantasia. Até as editoras parecem fazer pouco caso deles, favorecendo sempre os estrangeiros, uma atitude lamentável que não ajuda a mudar esse cenário. Tratando-se do autor brasileiro que já esteve várias vezes no topo da lista dos mais vendidos do Submarino, a maior livraria virtual do país, esse possível novo best-seller acaba tornando-se uma oportunidade desperdiçada por mero desleixo.
Apesar desses problemas, Draccon se mostra um escritor com talento que ultrapassa os gêneros, seja ele terror ou fantasia. É algo que nem todos conseguem. Muitos escritores, ao tentar experimentar novos ares, acabam tropeçando em seus próprios vícios. É o que acontece com André Vianco em “O Caso Laura”, que tenta abandonar os vampiros para escrever um policial, e com Paulo Coelho em “O Vencedor Está Só”. Draccon, dessa forma, mostra que, independente disso, tem futuro – mesmo após o último “Dragões de Éter” chegar às prateleiras.