Stella F.. 16/01/2023
Emocionante!
Um defeito de cor
Ana Maria Gonçalves - 2006 / 952 páginas – Record
Resenha/Resumo:
Fiquei com esse livro excelente por pouco mais de dois meses. Livro de escrita fluída, só não vou dizer fácil, pois o tema é áspero e muito sofrido. O que falar de um livro com tantas informações, tanta história, do Brasil e da África? Comecei fazendo alguns resumos dos primeiros capítulos, mas depois percebi que estava sendo infrutífero, e atrapalhava o andamento da leitura como um todo.
Espero com essa pequena resenha conseguir mostrar o quanto o livro é denso, didático, e sua pesquisa importante para o conhecimento histórico sobre escravidão, religiões, costumes do Brasil e da África, superação, conquistas e muitos outros elementos.
Conhecemos o histórico familiar que tem origem no Daomé. Há um deslocamento familiar para Savalu e depois para Uidá. Somos apresentados à família da avó, mãe, filho e gêmeas (ibêjis), onde a narradora Kehinde está inserida. Temos alguns eventos muito violentos de mortes de membros da família, mas também de solidariedade e amizade. Há o culto a várias divindades e sabe-se que os gêmeos são um presente divino. Os nomes também são importantes como definidores das pessoas. Um dia as crianças vão ver a chegada de um navio e acabam sendo presas e escravizadas sendo trazidas para o Brasil especificamente para Salvador. E ocorrem violências, fome, degradação, doenças, como já conhecemos das histórias da escravidão.
Desembarcam na Ilha de Itaparica. Kehinde fica impressionada com a quantidade de pretos e mercadorias que são desembarcadas. Admira às mulheres enfeitadas com muitos colares e turbantes. São colocados em um grande armazém para serem escolhidos e comprados, e ela torce para que seja logo comprada, porque vê muitos já sem dignidade, quase implorando para sempre levados. É escolhida já no segundo dia.
“Isso porque nem todos prestavam atenção, alguns pareciam completamente indiferentes em relação ao próprio destino, não se importando se fossem comprados ou não, se vivessem ou não.” (posição1140)
O nome dela foi questionado, pois todos foram batizados antes de embarcar, mas ela fugiu do padre, e ao chegar ao Brasil, adotou o nome cristão de Luísa, nome de uma amiga do barco.
“Mesmo quando adotei o nome Luísa por ser conveniente, era como Kehinde que eu me apresentava ao sagrado e ao secreto.” (posição 1160)
Seu dono era o senhor José Carlos de Almeida Carvalho Gama, do qual herdou o sobrenome. Tinha como principal amiga, a Esméria, que era sua protetora. Tinha que se aprender logo o português, porque língua de preto não era permitido na casa. Kehinde ia ficar responsável por cuidar da sinhazinha Maria Clara, filha do sinhô, que ficou viúvo do primeiro casamento (esposa Angélica), e no momento era casado com Ana Felipa e não tinha filhos, ela os perdia todos. Começa a sofrer assédio por parte do seu senhor que a violenta, e ela tem um filho.
“Eu olhava aquilo e não conseguia acreditar que estava acontecendo de verdade, que o Lourenço, o meu Lourenço, o meu noivo, também tinha as entranhas rasgadas pelo membro do nosso dono, que parecia sentir mais prazer à medida que nos causava dor.” (posição 2970)
Chamava-se Banjokô ou José Gama e era um abiku (criança nascida para morrer). A sinhá Ana Felipa se apaixonou por ele, e cuidava dele como a um filho. Ela precisava fazer a cerimônia do nome junto a um babalaô. Kehinde passa a ser empreendedora quando vira escrava de ganho. Ganha dinheiro, aprende a fazer cookies, faz amigos, conhece os muçurumins e só vai aumentando o seu negócio, e a partir disso começa a guardar dinheiro, junto à uma cooperativa, para a sua alforria e do filho.
Então conhece o Alberto, um português, e com ele tem um filho, o Otomunde ou Luiz Gama. Mudam-se para uma casa, e lá abrigam vários amigos, e expande os negócios. Nesse meio tempo perde o primeiro filho e fica desolada. Parte então para o estudo dos voduns, ela nunca deixou de querer saber sobre suas origens e sua missão. Já estava separada do Alberto, e fica muito tempo afastada. Quando retorna sabe que seu filho desapareceu, que o pai o vendeu como escravo, mesmo ele sendo livre.
É importante ressaltar, que ela participa da Revolta dos Malês e de outras Revoltas, como a Cemitarada, sendo presa em mais de uma ocasião.
E começa então a saga de Kehinde pelo mundo. Vai para São Paulo, Rio de Janeiro e por fim para a África. Nunca deixa de procurar o filho! A descrição de tudo que estava acontecendo na época foi muito interessante: a efervescência das ruas, dos teatros, a família real, descrições bastante vívidas, que parece que estamos vivendo lá, e as descrições de São Paulo, com seus rios, ruas surgindo, também são vigorosas. Um retrato de época muito bem escrito e delicioso de ler.
Na África constrói uma casa de rainha, passa a ser uma pessoa influente, que conhece até os soberanos e faz parte da sociedade, casa-se com um inglês e tem gêmeos. Kehinde entra para o ramo da construção, já que sua casa à brasileira fez tanto sucesso, e recebeu muitas encomendas. E apesar de parecer que esqueceu, continua procurando o filho desaparecido, e recebe relatórios regularmente, mas não há indício nenhum sobre ele.
No final da vida fica cega, e tem amparo de uma amiga que recebeu seu amparo em outra época. Ela era uma pessoa querida e ajudava a todos que precisavam.
Uma mulher forte, guerreira, empreendedora, à frente do seu tempo, amiga, mãe, com algumas decisões questionáveis, mas que seguia em frente, sendo humana, com defeitos e muitas qualidades, mas sempre aprendendo!
Outro detalhe, é sua amizade com a sinhazinha Maria Clara, uma amizade que durou a vida toda, apesar das diferenças de situação econômica entre as duas. Kehinde, na casa da amiga, sempre foi recebida pela porta da frente, mesmo quando ainda era escrava.
Um ponto forte do livro, são as descrições dos diferentes cultos às religiões, principalmente às religiões afro-brasileiras. Mas fala-se também das religiões mulçumanas e da religião católica. Há descrições dos cultos aos orixás, voduns e vodunsis. Nesse ponto, achei muito extenso. Talvez pudesse ter sido mais enxuto, mas acredito que a autora fez com o propósito de esclarecer aos leitores principalmente brasileiros, que possuem pouco conhecimento sobre todas as variações possíveis dentro das religiões afro-brasileiras e toda a sua origem e mistura.
“Eu sabia que o mesmo tinha acontecido com a religião dos orixás, pois em África, cada orixá é cultuado em uma determinada região, da qual é o protetor. No Brasil, por causa da falta de liberdade e de espaço para que cada orixá tivesse seu culto separado, foram todos misturados no candomblé.” (posição 5024)
A versão em ebook facilitou a leitura, com o significado das palavras entre parênteses logo a seguir.
Livro excelente!