atargino 02/11/2012
Cinquenta Tons de Cinza e a “salada de frutas literária” (Fifty Shades of Grey and “literary fruit salad”)
Resenha do blog "Antes do amanhecer...": http://blogantesdoamanhecer.blogspot.com.br/
Sou uma declarada amante da literatura, principalmente dos clássicos. Contudo, leio sobre diversos temas e autores atuais e, atiçada pelo “bichinho da curiosidade”, acabei lendo os dois primeiros volumes de Cinquenta Tons de Cinza (Fifty Shades of Grey), de E L James. Não vou ser repetitiva e criticar a má desenvoltura literária da autora. Quero chamar a atenção para questões ainda não tão exploradas por outros críticos literários.
Confesso que nunca li a trilogia Crepúsculo e muito menos assisti a qualquer uma de suas adaptações para o cinema. No entanto, pelo que li por aí, Cinquenta Tons de Cinza e sua sequência, Cinquenta Tons Mais Escuros (Fifty Shades Darker) e Cinquenta Tons de Liberdade (Fifty Shades Freed), são baseados (fanfiction) na saga Crepúsculo, de Stephenie Meyer. Todavia, ouso dizer que a trilogia Cinquenta Tons é inspirada em muitos outros textos.
Em minha opinião, a autora (ausente de criatividade e cansada da mesmice) fez uma verdadeira “salada de frutas” ao misturar tudo quanto é livro e filme em sua “obra”. Anastacia Steele (protagonista de Cinquenta Tons de Cinza) é a constatação de uma donzela virgem em busca de seu príncipe encantado - o que nos remete aos contos de fadas. Christian Grey (protagonista e par romântico de Anastacia) completa a ideia da fantasia ao ser descrito como um verdadeiro cavalheiro: abre portas de carro, deixa a dama passar à frente, socorre-a de perigos e cuida dela como um pai. Enfim, o príncipe encantador e mítico.
Não pude deixar de notar, todavia, a semelhança da sequência de Cinquenta Tons com os romances açucarados que li em minha adolescência. Muitos aqui devem se lembrar dos livros vendidos em bancas de jornal Sabrina, Júlia e Bianca (não me recordo se havia outros) que retratavam mulheres apaixonadas por belos homens. Nestes romances, quando o enlace amoroso finalmente acontecia, também havia cenas de sexo descritas com bastante sutileza: um seio à mostra aqui, outro ali, uma mão aqui, outra acolá... – e isso era o que as adolescentes da época liam de pornográfico até então. Lembro-me, inclusive, que os livros passavam de mão em mão entre minhas amigas e eram lidos escondidos de nossas mães.
Pois bem, voltando para os Cinquenta Tons, nunca havia lido algo que me fizesse relembrar de tantas outras coisas que li ou assisti anteriormente. Já na primeira cena sadomasoquista entre Anastacia e Christian, tive outro flashback ao lembrar de um filme que assisti há alguns anos. Secretary (2002), com James Spader e Maggie Gyllenhaal, conta a história de um advogado perturbado e sádico que se vê diante de uma garota que ele descobre ser masoquista (eis então a combinação perfeita!). Aliás, não apenas a questão sadomasoquista é perceptível entre os Cinquenta Tons e Secretary.
Em Cinquenta Tons, Anastacia acaba por entrar numa nova realidade recém-formada da faculdade de Letras. Já em Secretary, Lee Holloway (a protagonista) acaba de sair de um sanatório e está prestes a começar uma nova vida. Ambas, portanto, anseiam e projetam por viverem novas experiências. Lee então arranja um emprego de secretária num escritório de advocacia (eis o porquê do nome do filme) e Anastacia numa editora. Como fazia muito tempo que assisti ao filme, achei por bem revê-lo para realmente constatar as coincidências... e encontrei muitas outras!
Anastacia e Lee são garotas ingênuas que pouco sabem a respeito da vida e possuem um amigo declaradamente apaixonado por elas. José é amigo de Anastacia; ele se declara e até tenta beijá-la depois de praticamente deixa-la bêbada na comemoração da formatura. No entanto, ela é “salva” por Christian. Em Secretary Peter é amigo de Lee; eles namoram, transam e até ficam noivos, mas Lee foge e vai atrás do advogado, que é o seu chefe e por quem está apaixonada. Aqui temos então os amigos apaixonados das protagonistas: Peter e José.
Pensar sobre Peter e José me fez lembrar da bíblia. Peter, ou Pedro traduzido para o Português, era um dos apóstolos e José, como todos sabem, era o pai de Jesus. Nesse contexto ainda temos Christian (Cinquenta Tons), que pode ser traduzido como “cristão”. Pedro e José eram cristãos e Christian poderia ser considerado, numa singela analogia, o suprassumo dos dois (nossa, será que estou viajando?). Principalmente quando nos deparamos com a incansável repetição de quanto Christian é jovem, lindo, rico e poderoso.
Ademais, há outro detalhe que ainda não mencionei. O nome do advogado em Secretary é E. Edward Grey (sim, isso mesmo que vocês leram!). Esse era um detalhe do qual não me recordava e tomei um susto ao ler a inscrição na placa do escritório de advocacia em uma das cenas. Que incrível coincidência o nome do advogado remeter aos dois personagens dos livros que dialogam entre si, pois “Edward” é o protagonista de Crepúsculo e “Grey” o de Cinquenta Tons. Entrei em choque e até dei uma pausa no filme para entender melhor aquela sinapse.
Outra cena em Secretary que chama a atenção é quando Lee imagina estar indo ao encontro de Mr. Grey (o advogado) e ele está à frente de uma parede vermelho-sangue que se abre e os leva para um jardim cheio de flores idênticas às que ele cultiva. Nesse jardim, na imaginação de Lee, eles se permitem aos prazeres do sexo. Tal cena remete ao “quarto de jogos” de Christian em Cinquenta Tons - descrito por Anastacia como o “quarto vermelho da dor” -, local destinado aos prazeres do sexo sadomasoquista (e sim, outra coincidência...).
Confesso que, por um breve momento enquanto revia o filme, pensei que Cinquenta Tons talvez não passasse de um plágio, mas não de Crepúsculo, como alguns dizem, e sim de Secretary! Claro que num tom mais moderno, com laptops, smartphones, carros luxuosos, jatinho, helicóptero, muitas cenas de sexo, amor ingênuo e muito, muito dinheiro.
Diante disso, e afastando a ideia de plágio, cheguei à conclusão de que tudo era uma verdadeira “salada de frutas literária”. E L James, autora de Cinquenta Tons de Cinza, parece ter se inspirado em todo esse conteúdo, seja cinematográfico (embora valha dizer que Secretary também é baseado em um livro e isso é mencionado no início do filme) ou livresco para compor a sua trama, apimentando-a e trazendo-a à contemporaneidade.
Essa nova visão literária do sexo parece estar agradando. Não à toa, os livros da autora estão entre os mais vendidos nos EUA e também aqui no Brasil. Contudo, nada disso é novidade. Sempre houve literatura sadomasoquista, romântica, sensual, bíblica e a de contos de fadas. O que a autora precisou fazer foi apenas juntar tudo isso numa sequência de livros para um público carente de pornografia atualizada e pego de surpresa por toda essa mistura. Bom, e ela se deu bem, pois está milionária...
Será esse então o segredo do sucesso de um livro? Uma “salada de frutas literária”, e por vezes repetitiva, porém revestida de uma nova linguagem? Ou será que os leitores é que necessitam de uma nova postura crítica em relação àquilo que leem?
22/10/12
Aline Targino – licenciada em Letras pela Uerj.