Lucas 10/06/2017
E o mundo se cobre de horrores...
A continuação da trilogia O Século, iniciada em Queda de Gigantes, atende com louvor às expectativas geradas ao fim da obra inicial: Inverno do Mundo é denso, cinematográfico e dramático, um deleite histórico do período mais intolerante do século XX.
A sinopse já trás essa previsão sombria descrita nessa segunda parte. É quando Ken Follett relatará os efeitos da Segunda Guerra Mundial nos carismáticos personagens fictícios, desenvolvidos em Queda de Gigantes e, principalmente, nos seus filhos. Assim, os protagonistas da obra anterior agora são levados a um "segundo plano de luxo": cabe aos seus descendentes a tarefa de prender o leitor em uma ficção viciante, que está sob permanente influência da história da Europa entre 1933 e 1949 (abrangência da obra).
É o caso de Walter Von Ulrich e Maud Fitzherbert, cuja história de amor foi um dos grandes atrativos da obra anterior. Por estarem residindo em Berlim na época da ascensão do nazismo, o núcleo narrativo do casal é usado para que seja descrito a transformação ocorrida na sociedade alemã do início dos anos 30. Desse modo, o incêndio do Parlamento Alemão e a habilidade de Hitler em usar isso a seu favor ganham destaque nos primeiros momentos de Inverno do Mundo. Com o passar das páginas, há o fortalecimento da polícia nazista (Gestapo) e logo no primeiro capítulo o leitor tem contato com um estarrecedor relato de prisão e tortura. Além disso, a filha mais nova do casal, Carla, sofre na pele as consequências do machismo alemão trazido pelo nazismo. E se isso não fosse o bastante, seu irmão mais velho tem uma forma de pensar radicalmente oposta a da família, relatando, assim, a realidade de muitos jovens alemães filhos de democratas da época.
O núcleo da carismática galesa Ethel Williams também sofre os efeitos dessa era negra da história. Seu filho mais velho, Lloyd (cuja paternidade, para ele, é um grande mistério e para o leitor um motivo de suspense), resume bem a mente de um britânico democrata: o combate ao nazismo é uma luta constante, até mesmo em outros países. Nesse ponto, Follett também descreve a trajetória do General Franco, ditador fascista que, por meio de um golpe militar, chega ao poder na Espanha. Lloyd é um adolescente típico da época, que com a passagem do tempo vai adquirindo maior sabedoria e percebendo que nem sempre as ferramentas mais óbvias são capazes de enfraquecer o regime de medo que se alastrava pela Europa, já no contexto das conquistas alemãs no início do conflito.
Os outros círculos narrativos (os Peshkov, da URSS e dos EUA, os Dewar, dos EUA e os Williams, do País de Gales) são tratados com igual relevância, muitas vezes se relacionando entre si. Follett os usa para descrever as feridas provocadas pela Guerra, seja na América, na Europa e na Ásia, fazendo assim um relato bastante verossímil de um mundo em ebulição bélica.
No entanto, alguns aspectos negativos presentes em Queda de Gigantes também estão em Inverno do Mundo. O principal deles é a necessidade um pouco forçada que o autor tem de prender a atenção do leitor, usando descrições desimportantes. O perfil de quem lê esse tipo de livro normalmente é o de quem gosta de história e de um bom romance, cuja mistura, quando bem feita, é sensacional, que é o que ocorre na obra. Mas em nenhum escopo da realidade esse leitor está interessado na quantidade de pelos pubianos (!) que uma personagem pode vir a ter, por exemplo. É desconfortável falar de um tema tão íntimo em uma resenha, mas são coisas que a narrativa trás. Quem leu Queda de Gigantes (o que é indispensável para se adentrar em Inverno do Mundo) sabe do que se trata. Há, todavia, um pouco mais de sutileza aqui, em se tratando de temas íntimos, que incomodam, mas que em nenhum momento fazem a leitura ser desprezada ou abandonada. O fascínio que Inverno do Mundo causa passa longe destas ressalvas, que não são bem-vindas mas que são superadas.
Outro aspecto negativo, mas que não está em Queda de Gigantes é um certo monopólio a um determinado lado da história da época, nas últimas 150 páginas. É importante que se diga que os relatos do autor nesse sentido correspondem ao que de fato ocorreu, mas coisas parecidas ocorriam em ambas as esferas tirânicas e não são descritas com o mesmo fervor. São apenas fatos isolados, incapazes de influenciarem negativamente o pensamento de alguém, mas este foi um comportamento que não ocorre durante os primeiros 80% da obra. O leitor que conhece muitos dos pormenores da Segunda Guerra Mundial notará essa tendência no final da leitura.
Na contramão disso, Follett vai construindo durante a narrativa um aspecto que é incrivelmente verdadeiro e válido atualmente: a inutilidade dos radicalismos. As páginas de Inverno do Mundo ensinam que qualquer lado político radical, seja de direita ou de esquerda, são equivalentes em se tratando de mensuração do impacto social que causam. A repressão, o medo e a autoridade sempre serão as mais importantes armas desses regimes em busca de um suposto fortalecimento nacional ou equilíbrio econômico. Os personagens fictícios do autor ensinam que um indivíduo pode pender para um lado ou outro dessa "balança", de acordo com a sua percepção do que é certo. Mas ele sempre deve estar ciente de que, ao se aproximar de um extremo, poderá estar pensando de uma forma totalmente contrária ao oposto, mas usará das mesmas ferramentas para o convencimento e atração de massas, a fim de fortalecer esse seu lado. E o uso destas táticas é o que gera conflitos e já foi responsável por incontáveis mortes ao longo da história da humanidade.
De tão tênue que é a linha que divide a ficção da história em Inverno do Mundo, alguns horrores, especialmente na Alemanha, podem parecer elementos de uma distopia apocalíptica, tamanho o seu nível de absurdo. É inicialmente inacreditável que o ser humano tenha sido capaz de tais atrocidades com seus semelhantes, ocorridas por motivos tão triviais nesse raciocínio, como a religião. Mas uma pesquisa rápida durante a leitura fará o leitor crer que sim, estas coisas realmente ocorreram, há menos de 80 anos, o que não é nada na linha evolutiva da humanidade. Estes elementos sombrios, de dominação e imposição, fazem com que quem lê perceba a infinidade de nuances que a Segunda Guerra Mundial possui, gerando a certeza de que as histórias e fatos relacionados ao evento jamais serão totalmente mensurados ou refletidos.
Inverno do Mundo é, apesar das ressalvas, um excelente livro de história, com diversas tramas fictícias paralelas, que ora se cruzam, ora se afastam. Uma obra que, assim como a sua sucessora, informa, revolta e emociona em doses iguais. E como em Queda de Gigantes, Follett deixa vários "assuntos" não resolvidos que já de cara trazem uma grande expectativa para Eternidade por Um Fio, que fechará a, até aqui brilhante, trilogia O Século.