Lucas 02/06/2019
Um romance histórico de amor e espera
A Casa das Sete Mulheres, lançado em 2002, é um livro universal. É uma daquelas obras que transcende o tempo, capaz de emocionar leitores de toda e qualquer época. Toda essa sensação de encantamento quase mágico em alguns momentos deriva de um contexto histórico de medo e apreensão, que corresponde à Guerra dos Farrapos, intenso conflito ocorrido especialmente no Rio Grande do Sul e Santa Catarina entre 1835 e 1845.
Letícia Wierzchowski (1972-), a autora, fez d'A Casa das Sete Mulheres a sua obra-prima e um dos melhores romances nacionais deste século. Tamanha rotulação é justa: o livro é fruto de uma intensa pesquisa a respeito de personagens reais (a base principal do romance e a imensa maioria dos personagens existiram de fato, muitos deles símbolos máximos da cultura gaúcha).
Praticamente todos os livros que tratam de um contexto histórico próprio precisam de uma pré-contextualização para que as nuances da narrativa sejam mais bem assimiladas. Mas A Casa das Sete Mulheres foge dessa regra no que se refere ao conflito em si: é totalmente explicativo em narrar as principais ocorrências que marcaram a Guerra dos Farrapos. Inclusive, recomenda-se até que o leitor que não tem muito conhecimento dos detalhes do conflito ou que não tenha muito contato com a cultura e tradição gaúchas não pesquise antes ou durante a leitura a respeito dos personagens históricos mencionados, pois essa pesquisa pode trazer spoiler's acidentais.
No que tange ao contexto histórico geral, é necessário, contudo, tecer algumas observações. A década de 1830 foi marcada por vários movimentos sociais que visavam, mesmo que indiretamente, o fim da monarquia. Isso porque em 1831 o imperador Dom Pedro I abdicou em favor do seu filho, Dom Pedro II, que, na época da abdicação, contava com pouco mais de 5 anos de idade. Assim, até que ele atingisse os 15 anos, o Brasil foi controlado por quatro regências, compostas basicamente por militares e importantes elementos próximos da monarquia. Aproveitando-se desse ambiente instável, foram diversas as revoltas, como a Balaiada (Maranhão, 1838), Sabinada (Salvador, 1838) e a Cabanagem (Belém, 1835 a 1840), tendo como base bandeiras como o fim da monarquia e da escravidão. A Guerra dos Farrapos foi a mais longa, contundente e sangrenta dessas revoltas.
Além do fim da monarquia e instauração da república, os "farrapos" (como eram chamados os revoltosos, em função do estado deplorável das vestes que a maioria deles usava), defendiam melhores condições econômicas ao charque, carne bovina produzida com sal e secada ao sol, o que aumentava a sua durabilidade, e que era o principal produto da economia do Rio Grande do Sul. O charque era muito utilizado especialmente na alimentação dos escravos do sudeste, mas que advinha em grande parte do Uruguai, que possuía isenções tarifárias para exportação. Assim, o charque produzido no Rio Grande do Sul não era economicamente viável. Tal fato foi gerando revoltas dos grandes estancieiros do estado, e, ao provocar um latente sentimento de ódio e revolta contra o Império, trouxe ao movimento um sentido de busca por liberdade, seja econômica ou social (eles também defendiam a libertação dos escravos, apesar de muitos desses senhores de terra, inclusive os personagens d'A Casa das Sete Mulheres, possuírem vários deles). Tudo isso acabou eclodindo em 20 de setembro de 1835, quando Porto Alegre foi tomada pelos revoltosos (a data hoje é um feriado muito importante no Rio Grande do Sul) e houve a criação da chamada República Rio-Grandense, um "país" inicialmente com bandeira e hino próprios, correspondente ao território do Rio Grande de Sul, mas sem o reconhecimento do Império, óbvio. A partir daí, A Casa das Sete Mulheres narra com pormenores emocionais e históricos os fatos que marcaram o conflito.
Bento Gonçalves da Silva (que foi homenageado com o nome de uma bela cidade da Serra Gaúcha, capital nacional do vinho) assume um papel central na obra, apesar de estar longe de ser o protagonista da narrativa. Grande líder farrapo, ao perceber a inevitabilidade do conflito, acaba por agrupar todas as suas parentas na chamada Estância da Barra, situada à beira do Rio Camaquã, a cerca de 30km a oeste da foz do rio, na famosa Lagoa dos Patos. A estância era de propriedade de D. Ana, irmã de Bento, e abrigou por lá sua outra irmã, a caçula Maria Manuela com suas três filhas (Rosário, Mariana e Manuela) e Caetana e Perpétua, respectivamente esposa e filha do líder revolucionário. Ainda havia D. Antonia, a "oitava" mulher, irmã mais velha de Bento, viúva, que vivia na Estância do Brejo, fazenda que ficava na foz do Rio Camaquã, e que visitava regularmente as outras mulheres. Cada uma das sete mulheres possuía outros irmãos e/ou maridos, que, junto com Bento Gonçalves, resolveram desafiar um Império em nome de um ideal de liberdade e justiça social, o que traz uma aflição intermitente aos dias delas nessa quase reclusão. Elas também possuíam filhos e filhas menores, que residiam com elas no refúgio (a "casa" não era apenas ocupada pelas sete mulheres, portanto).
A narrativa, rica em detalhes, não se restringe apenas às duas estâncias. Se, de fato, no começo da história há uma relativa monotonia (os primeiros 25% da obra são basicamente a leitura de cartas advindas dos parentes homens na guerra e o seus respectivos impactos entre as mulheres), aos poucos a autora direciona o escopo da sua narrativa para questões mais práticas do conflito. Ela faz isso principalmente pela inserção histórica do italiano Giuseppe Garibaldi, aventureiro dos mares e que, identificado pela causa farroupilha, acaba por se envolver na guerra e no círculo feminino principal do livro. Figura emblemática, Garibaldi também se tornou um símbolo de bravura e liberdade e isso é reforçado aos olhos do leitor quando a história se debruça sobre as suas heroicas ações na guerra.
É a filha mais jovem de Maria Manuela e sobrinha de Bento quem assume o papel discreto de protagonista do livro. Os capítulos, divididos de acordo com os anos da guerra, possuem diversas inserções em primeira pessoa de Manuela, por meio dos seus diários. Algumas dessas inserções datam de muito depois do fim do conflito, onde se percebe um olhar nostálgico para um momento muito difícil vivido no passado. Estas descrições vão deixando pistas do que vai ocorrer na obra, mas fica claro o caráter doce, ingênuo e romântico da personagem. Mesmo após o fim dos combates, ela seguiu travando seu "conflito" particular, diante de um adversário intransponível: o tempo, incapaz de desconstruir os laços com um amor impossível. Estes relatos também servem para ilustrar o talento narrativo da autora, já que eles são ficcionais (todos os personagens citados realmente existiram e o "enclausuramento" que prende a narrativa também ocorreu de fato).
Quando se fala em A Casa das Sete Mulheres é inevitável que não se tenha por referência a produção seriada da Rede Globo, exibida pela primeira vez em 2003. De forma geral, o trabalho artístico ali desenvolvido é espetacular: trilha sonora impecável, excelente escolha de atrizes e atores e outros pontos tornam a minissérie um marco no que tange a produções históricas nacionais. Mas é igualmente inevitável que não se compare a obra literária com a adaptação; o livro possui uma atmosfera mais real da época em termos de conservadorismo feminino e alguns personagens são deixados de lado na série. Tanto a série quanto o livro merecem ser apreciados, todavia, pois ilustram bem a resiliência silenciosa das mulheres gaúchas da época, que se tornaram um símbolo do período mais sangrento da história do sul do Brasil e que tão bem Letícia Wierzchowski consegue descrever (a travessia por terra de dois barcos de 12 e 18 toneladas cada um por quase 90 quilômetros de pampa, idealizada por Garibaldi e seus homens e traduzida em imagens na adaptação, torna esse momento do livro ainda mais sensacional; mesmo que não tenha relação com essa resiliência feminina, é um exemplo bem representativo da qualidade da minissérie).
Esta resiliência, esse caráter quase infinito de espera das mulheres do Rio Grande do Sul, a sua força de superar a agonia da falta de informação e estar sempre pronta para receber de volta seus homens após as guerras ou enterrá-los, se for preciso, está longe de ser uma criação de Letícia. Erico Verissimo (1905-1975) esteve na vanguarda dessa descrição, ao colocar mulheres fortes como maiores elementos da saga d'O Tempo e O Vento, em especial no seu primeiro volume, o incrível O Continente, de 1949 (que, dentre outra infinidade de conflitos, também descreve a Guerra dos Farrapos, mas sem personagens reais na narrativa). A relação, portanto, entre os dois livros é bem latente nesse aspecto de paciência feminina. Há certa semelhança também com o excelente E O Vento Levou (1936), da norte-americana Margaret Mitchell (1900-1949), que narra a brutal Guerra de Secessão dos EUA (1861-1865) sob o ponto de vista predominantemente feminino. A verossimilhança com A Casa das Sete Mulheres se refere, nesse caso, aos ideais norteadores dos revolucionários, que visavam à liberdade e o fim da exploração econômica, alimentados por uma esperança convicta em torno de uma visão de sociedade que precisava destruir certas estruturas sociais para florescer (as semelhanças políticas se restringem a isso, todavia. Os sulistas norte-americanos defendiam muitos pontos antagônicos aos defendidos pelos farrapos, se é que podem ser comparados, mesmo que rasamente). Outro ponto em comum (este mais nítido) é o enfoque narrativo direcionado ao lado derrotado de um conflito que, cada um a sua realidade e cultura, marcou gerações e deixou marcas eternas.
A Casa das Sete Mulheres é uma obra magnifica, não só por relatar situações reais que tornaram mais especial e inconfundível a cultura gaúcha como também por funcionar como um monumento histórico do mais relevante movimento de revolta do Brasil Império. Debruçar-se sobre a excelente escrita de Letícia Wierzchowski é ter uma aula de história com tons pessoais, marcada por um heroísmo, ora épico, ora melancólico, que sempre irá encantar e emocionar qualquer leitor de qualquer origem.