Gabs 31/01/2023
"Se dizia daquela terra que era sonâmbula."
E foi simples assim.
Foi o primeiro livro de autor africano que eu li e foi incrível.
Eu tenho muitas coisas pra comentar sobre a experiência, peço perdão adiantado pelo tamanho do texto e forte abraço
Uma sinopse rápida: Terra Sonâmbula conta a história de um menino (Muidinga) e um velho (Tuahir) em fuga de uma guerra acontecendo em Moçambique, quando encontram abrigo nos restos de um ônibus carbonizado e repleto de cadáveres. E em um desses cadáveres Muidinga encontra uma maleta contendo 11 cadernos que contam a história mágica e repleta de fantasia de um rapaz chamado Kindzu.
A premissa já é original por si só e pelo menos no meu caso despertou muita curiosidade, o que me convenceu a comprar o livro (junto com uma resenha muito boa aqui do skoob mesmo). Eu descobri só um tempo depois que foi leitura obrigatória da fuvest ano passado, meus parabéns aos envolvidos. Fico feliz com esse tipo de literatura sendo valorizado dessa forma e em um vestibular tão reconhecido.
Por Moçambique ser outra galera lascada que teve o azar de um dia cair nas mãozinhas gordas de Portugal, lá a língua oficial também é o português. Resolvi acrescentar isso na resenha pq eu tenho uns vergonhosos 16 anos nas costas e não fazia a menor ideia, ora poix (desculpa). Mas eu realmente acho que vale a pena ler por causa disso, pq o dialeto deles é muito rico. Muito recheado de cultura. Inclusive, no final do livro tem um glossário por conta de algumas palavras que aparecem na história e que não existem no pt-br. A experiência de conhecer uma variação tão linda da nossa língua valeu tanto quanto ler a história toda. A narrativa mostra muita resistência à colonização em vários momentos, mas o dialeto repleto de "africandades" ? que é um termo utilizado pelo próprio autor ? é pra mim a resistência mais bonita.
(Aliás, alguns diálogos chegam até a ser engraçados por causa do vocabulário. Sabia que existem verbos como lengalengar ou matabichar? Pois é.)
Durante a leitura você vai encontrar muitas referências a lendas e mitos africanos, mas adianto que eles não são confusos de entender. Falo isso até pq não tenho nenhum tipo de estudo em mitologia africana ? na verdade, em cultura africana no geral ?, mas mesmo assim não me senti perdida. Aliás, aproveitando o embalo, esse livro abriu os meus olhos para uma vertente belíssima da literatura que eu preciso conhecer mais a fundo. Eu sempre tive vontade de mergulhar em alguns clássicos "diferentões", como os russos, por exemplo. Mas ter começado por aqui serviu uma parte impactante da história do mundo que não recebe a valorização que tanto merece. Moçambique foi só o começo. Eu quero ler a África toda.
E sim, assim como eu falo em praticamente qualquer resenha ou histórico, o tópico de família sempre me atinge com força. Muidinga e Tuahir podem não ter laços de sangue, mas ensinam muito sobre o que é ser família e lar de alguém. Fiquei sensível e emocionada em praticamente todos os capítulos deles, cheguei a preferir a história desses dois do que a do próprio Kindzu (que é basicamente o carro-chefe do livro). E todo o cenário em que eles vivem, cheio de guerra e miséria, nos desperta pra uma realidade terrivelmente triste, mas que está logo ali.
Não é um livro fácil. É lindo, é uma obra de arte, mas também é cruel e voraz. É amargo. Retrata cenas nada bonitas sobre fome, pobreza, suicídio, estupro, racismo e mais tantos outros gatilhos. Eu não sei a classificação indicativa ao certo, mas eu chutaria +16.
Foi uma aventura boa até demais. Meu primeiro livro do ano, que li com calma e aproveitando cada palavrinha, porém com um certo desespero hoje pois já é dia 31 e eu queria terminar antes da virada do mês. E eu consegui!
Eu queria encerrar essa resenha com algo peculiar que eu senti durante a leitura: que o livro envelheceu no processo. Nada sobre isso foi mencionado, mas pareceu que a escrita de repente se sacudiu e passou pela transição da infância até a vida adulta diante dos meus olhos. E no fim adormeceu, sentindo o peso da velhice e deixando suas palavras voarem enquanto ele ficava e me deixava esse buraco no peito. Acho que, assim como Matimati, talvez a narrativa de Terra Sonâmbula seja sonâmbula também. Quem sabe?