Lari Ribeiro 27/11/2021
Do inferno ao purgatório: uma análise psicológica de Madison Spencer
"Se os vivos são assombrados pelos mortos, os mortos são assombrados pelos próprios erros."
Dentre os diversos devaneios da Maddy durante sua narração de sua jornada pelo inferno, essa foi uma das poucas que de fato são sensatas. Acho que o fato dela fugir tanto do real, e apresentar inúmeros pensamentos delirantes durante o livro, que me inspirou a ousar realizar uma análise psicológica dela.
"Condenada" é o primeiro livro de uma trilogia do Chuck Palahniuk inspirada na Divina Comédia de Dante Alighieri. Ouso dizer que Palahniuk realizou com maestria uma bela paródia do clássico, tendo Madison ocupado o lugar de Virgílio. Apesar de ser uma trilogia, Palahniuk nunca chegou a escrever o terceiro livro (pelo menos que sabemos), tendo atualmente somente o primeiro, Condenada, e o segundo, Maldita.
Como qualquer outra obra de Palahniuk, Condenada não decepciona quando o quesito é escrachar e ironizar elementos da sociedade como forma de crítica. Talvez o que os fãs do autor podem criticar nesse livro é sua narrativa que as vezes pode ser lenta. Não diria que muitas partes podem ser descartadas, mas são devaneios da própria Maddy que acabam prejudicando o fluxo contínuo de leitura.
"...o outro tipo de trabalho que a maior parte do povo faz no inferno é... telemarketing."
Antes de iniciarmos a análise da personagem, irei contextualizar a obra partindo da citação acima. O livro foi publicado em 2012 (alguns livros datam 2013, mas na ficha catalográfica da minha versão consta 2012), quando a mãe de Palahniuk estava no hospital internada em estado grave com diagnóstico de câncer. As únicas pessoas com quem ele conversava eram os atendentes de telemarketing que ligavam para ele. Acredito, com base nessa informação, que Condenada foi uma forma do autor trabalhar o luto que estava presenciando frente a possibilidade de perda da mãe.
"A morte é um grande processo(...) Seu corpo é só a primeira parte sua que se vai."
Dando inicio a análise de Maddy, logo na sinopse do livro vemos uma ideia delirante da personagem que é a causa de sua morte: uma overdose de maconha. TODOS, sem exceção, quando escutam isso já falam, "mas não é possível ter uma overdose de maconha" (exceto idosos e pessoas de idade que possuem pouca informação ou valores conservadores acerca da maconha). Eu fui uma dessas pessoas, e achava inconcebível essa ideia, o livro inclusive, em dado momento, brinca com essa informação também. O fato é que Madison Spencer não consegue conceber a causa de sua morte, e por isso acredita que morreu por uma overdose de maconha.
Isso é só a pontinha do Iceberg para as mais diversas ideias delirantes que Maddy apresenta pra gente. Mas não é somente isso que me captou. Confesso que do inicio até mais da metade do livro, a personagem me irritava em níveis absurdos, isso porque ela trazia ideias mirabolantes sob o real, e narrava os lados sórdidos e negativos das pessoas. (eu sou COMPLETAMENTE DIFERENTE, e por isso me irritava). Mas com o decorrer da leitura, nota-se que essa distorção da realidade é um sintoma para algo muito mais profundo na personagem.
É importante destacar aqui que Maddy morre aos 13 anos de idade, praticamente no inicio de sua adolescência, ou seja, ela estava formando sua psiquê. Todavia, desde que ela nasceu, como a personagem mesmo narra, ela esteve sozinha. Maddy esteve em um desamparo completo desde que se conhece por gente, então ela nunca teve ninguém para lhe impor limites ou apresentar a ela o que é real e o que de fato é a vida. Seus pais a tratam como se tivesse 8 anos de idade, palavras dela, mas são completamente libertinos à sua criação. Portando, Madison aprendeu a viver e só tinha ela mesma para lidar com a vida, só podia confiar em si e naquilo que acreditava que era o mundo. Em outras palavras, a personagem vive em um desamparo aprendido e clama por afeto.
A necessidade de afeto de Madison e a procura por sentir algo era tanta que em vida ela recorria a métodos de violência e transgressão consigo mesma. Podemos caracterizar como atitudes impulsivas e de risco. (a causa da sua morte partiu de uma atitude de risco). Não entrarei muito em detalhes nesse aspecto para não dar spoiler do livro.
"O grande orgulho de um demônio é também sua fraqueza."
Em vista disso, levanto como hipótese diagnóstica para Madison Spencer um transtorno de personalidade, mais especificamente, transtorno de personalidade limítrofe (conhecida também como borderline). Segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), o transtorno de personalidade Borderline é um padrão difuso de instabilidade das relações interpessoais, da autoimagem e de afetos e de impulsividade acentuada. No DSM-5 eles ressaltam que o transtorno surge no inicio da vida adulta, e Maddy possui somente 13 anos, porém levando em conta que o inferno não possui tempo, não temos como saber quanto tempo ela passou confinada em sua cela até de fato começar a narrar o livro.
Ainda sobre o transtorno de Borderline, indivíduos com o transtorno tentam de tudo para evitar abandono real ou imaginado e são muito sensíveis às circunstâncias ambientais. Durante a leitura, é muito claro esse tipo de comportamento em Madison, principalmente porque ela está no inferno (um local não muito propício à uma psiquê de qualidade). Pessoas border podem também apresentar raiva inadequada diante de uma separação de curto prazo realística ou quando ocorrem mudanças inevitáveis de seus planos. (não é a toa que Madison muda completamente em um dado momento do livro e realiza façanhas inesperadas)
Para não me estender muito, indivíduos border apresentam esforços desesperados para evitar o abandono, o que podem incluir ações impulsivas como automutilação ou comportamentos suicidas, podendo achar que esse “abandono” implica que eles são “maus”. (coincidência? acho que não)
"A única coisa que faz o Inferno parecer o Inferno, lembro a mim mesma, é a nossa expectativa de que ele pareça com o Paraíso"
Arrematando, o livro te leva ao inferno, mas consegue te divertir apesar das ideias mirabolantes. Eu facilmente recomendaria ele, claro que com um disclaimer. Eu comecei pensando que não iria ler a continuidade, e terminei com vontade de ler e com o desejo do terceiro livro inexistente. Acho que isso já diz muito sobre a obra!