spoiler visualizarFernanda M. 29/12/2023
Pinóquio: o corpo manipulado
Após assistir a adaptação de Pinóquio, dirigida por Matteo Garrone e estrelado por Roberto Benigni, resolvi encarar a leitura da obra na edição da Editora Darkside. Li e compartilho aqui minhas impressões desde os primeiros capítulos. Para começar, e para meu espanto, o nariz de Pinóquio cresce menos vezes do que esperei e isso não é nada frente a quantidade de surpresas que descrevo ao longo desta resenha.
O livro é um clássico infanto-juvenil, escrito por Carlo Collodi, em Florença, Itália. Foi publicado pela primeira vez em 1883 e essa história fantástica começa a partir do encontro entre Geppetto e um tronco de madeira na casa do Mestre Cereja. É deste improvável encontro que surge a marionete, Pinóquio.
Em uma das primeiras cenas, Pinóquio começa a afrontar Geppetto, seu criador, fazendo diversas travessuras, como pegar a peruca dele, e sorri, gargalha, se diverte com isso. Geppetto, inconformado com a situação, esbraveja com a marionete, afinal esta ainda nem está pronta e já age com falta de respeito. Mas o que Geppetto esperava? Ele esbraveja: "eu mereço isso, pois deveria ter refletido antes. Mas agora é tarde". Ele começou a lamentar a existência da marionete, pois ela tem um comportamento que não é exatamente o esperado, ou seja, ele não é uma marionete como as outras.
A Pinóquio é concedido um sopro de vida, e é preciso deixar claro, que ele não pediu por isso. E totalmente contrário ao que se aprende desde o nascimento, sem vergonha alguma, ele pronuncia que quer "viver na flauta", confirmando de todas as formas possíveis seu desejo de viver uma vida sem obrigações, de quem não quer exercer um ofício, muito menos estudar. Em resumo, somente quer fazer o que bem entende, o que lhe apraz.
Em contraposição aos atos de liberdade da marionete revoltada, aparece o Grilo Falante, que mais parece uma voz da consciência e tem por objetivo alertar a marionete para a necessidade de ter um bom comportamento social e porque não dizer litúrgico-religioso, estimulando contraditoriamente ainda mais as confusões vividas por Pinóquio.
Por conta dessas confusões Geppetto acabou sendo preso e ao sair da prisão, reencontrou a marionete, que distraída, sentou muito próximo ao fogo e teve as suas duas pernas queimadas. Sem as pernas e por conta do seu mau comportamento, o seu criador a deixou um dia inteiro chorando.
Durante a leitura, fica evidente que este sofrimento é causado para que Pinóquio se sinta culpado. Geppetto diz "e porque eu deveria refazer seus pés? Para ver você fugir de casa novamente"? Geppetto demonstra estar preocupado em manter a marionete controlada, do jeito que ela deveria ser, nenhuma outra preocupação.
É perceptível que assim como Geppetto deseja controlar a marionete, todas as pessoas que ela encontra pelo caminho também o querem fazer. Mas não é possível ignorar a falta de bom senso da marionete, que se recusa a seguir regras. Uma das grandes questões levantadas nesta história, é a manipulação do corpo da marionete e como esse controle é confundido constantemente com um sentimento de cuidado.
Pinóquio vive muitas aventuras e para compor estas cenas, surgem personagens fantásticos como fadas e animais com características humanas. Em uma das cenas, a marionete sofre uma tentativa de assassinato por parte da Raposa e do Gato, mas é encontrado e resgatado pela Fada acompanhanda do Grilo Falante, já citado anteriormente.
Com a intenção de salvá-la da morte, a sua salvadora convoca médicos, mas enquanto isso, o Grilo entoa a sua fala repressiva, dizendo coisas como "essa marionete aí [...] é um traquinas de pior marca", "é um malandro, preguiçoso, vagabundo". Uma voz de punição para a marionete que está indo de encontro a tudo aquilo que é considerado razoável para se viver em sociedade, desde o nascimento até a construção das relações neste mundo.
O Grilo Falante, estridente, como todos os grilos são, pode ser entendido como uma representação da moral e dos bons costumes que direcionam as pessoas a viver em sociedade. Independentemente da insistência da voz punitiva, Pinóquio experimenta suas aventuras, desafiando a vida e não se permitindo seguir as regras impostas.
Voltando a história, Pinóquio segue doente, se recuperando vagarosamente da tentativa de assassinato, e por isso a Fada tenta forçá-lo a ingerir um medicamento. A marionete descobre que o medicamento é amargo, e faz de tudo para não ter que engolir o líquido. Sem sucesso na abordagem, a Fada o ameaça dizendo que a febre o levará em poucas horas para o outro mundo. Mas Pinóquio não se abala e demonstra que não tem medo nem da morte nem da vida. Ele só quer fazer o que "dá na telha" e percebe a duras penas como é difícil fazer o que se quer diante de toda uma sociedade opressora.
Algumas páginas depois, em última instância e na tentativa de controlar o temperamento da marionete, a Fadinha finge sua própria morte, alegando como motivo a partida de Pinóquio. Este fica muito triste e começa a se sentir mal por tudo que causou. Se culpa, quando na verdade ele só quer fazer o que bem entende sem ser controlado, pois isto, literalmente, não é da sua natureza.
Pinóquio se martiriza sobre ser ou não aquilo que as pessoas desejavam que ele fosse. E é a partir deste dilema, que é necessário pensar como as pessoas se colocam nesse mundo em duas perspectivas básicas: o quanto suas atitudes agradam ou não agradam as pessoas ao redor. Mas não são os desejos, as vontades, o temperamento que forma o ser em si?
Sob que ponto de vista Pinóquio foi escrito? Pensar sobre isso, é entender que na maioria das vezes, a intenção do autor não valida a compreensão do leitor. Entretanto, é possível que haja um entendimento muito próximo da intenção da escrita. A história de Pinóquio foi contada e recontada ao longo dos anos, com a intenção de educar as crianças, ou por assim dizer, que fizessem exatamente aquilo que os adultos querem que as crianças façam.
Em outras palavras, torná-las boas crianças. Mas isso não é exercer o controle baseado em expectativas próprias? Ou seja, fazer a sua vontade prevalecer usando a moral como artifício para o bem viver social?
Como em todas as boas aventuras, Pinóquio tem os seus finais felizes. Ele finalmente reencontra a Fadinha, e descobre que de fato ela não tinha morrido, mas estava pregando uma lição, como em tantas outras tentativas. É importante destacar que quando Pinóquio reencontra a Fadinha, ele descobre que ela cresceu e se tornou uma adulta e então ele também deseja crescer, mas sua condição de marionete, o impede.
Para se tornar uma pessoa adulta, é preciso seguir uma série de regras, e este é um custo muito alto. Deverá fazer as coisas certas, entre elas, ser obediente, ir à escola, para quando finalmente crescer, escolher um ofício digno. Pinóquio rejeita tudo isso, como já foi dito anteriormente, ele deseja "viver na flauta". Afinal, ele não gosta de trabalhar e não nasceu para isso. E quem nasceu para trabalhar, não é mesmo?
Vale notar que todas as exigências feitas a Pinóquio são feitas a todas as crianças. Há uma cobrança exacerbada para que façam escolhas precoces, tomem decisões precipitadas, e tudo isso para corresponder às expectativas da sociedade. Cobranças e escolhas que não deveriam ser feitas às crianças. Também não deveriam ser tolhidas dos seus gostos, das suas vontades, dos seus anseios e de dizer o que pensam. Ao contrário, deveriam ter um espaço para pensar sobre quem realmente são e do que gostam e precisam.
Como todo clássico, ao chegar ao fim da leitura, são elaboradas várias interpretações, exigindo releituras e novas construções. Pensar o lugar de Pinóquio, é muito difícil, pois ele foi trazido à vida em formato de marionete e tentou viver da melhor forma possível. Uma marionete, perfeitamente entalhada, retirada das profundezas de um tronco de madeira, transformado em criança, em uma tentativa de suprir todos os anseios impostos pela sociedade. Uma marionete que viveu aventuras e suas dificuldades para no final se tornar um menino de verdade.
Algo que chama muito à atenção, é que quando ele se transforma em uma criança, se pergunta para onde foi a marionete na qual ele residia. E ela ainda estava ali, em um canto da sala, apoiada em uma cadeira, com a cabeça pendurada de lado e pernas e braços despencando do outro lado, um verdadeiro milagre que ainda continuasse de pé.
Pinóquio diz o seguinte: "como eu era engraçado quando era uma marionete, e como estou contente agora que me tornei um bom menino". Pensar, que a marionete já era uma criança durante todo esse tempo, mesmo que a construção da marionete descole o leitor da ideia de constituição de uma pessoa.
Essa é uma breve resenha sobre Pinóquio, um dos grandes clássicos infantis. Por ora, deixo o seguinte questionamento: Pinóquio após viver tantas aventuras, conseguiu se tornar uma criança de verdade, conforme sempre sonhou, enfim ele deixou de ser marionete, mas deixou de ser um corpo manipulado?