Leonardo1263 11/12/2023
Um Retrato da Podridão Social em Pinóquio, de Winshluss
Se é fã de quadrinhos e ainda não conhece essa pérola do mundo underground, vai adorar essa versão triste e pessimista de um dos ícones da cultura infantil. Originalmente escrito em 1883 por Carlo Collodi, Pinóquio é uma das histórias mais longevas. Ganhou o publico nas telonas em 1940 por sua famosa adaptação da Disney e imortalizou o personagem. Esta edição que apresento foi escrita originalmente em 2008, pela visão do quadrinista Winshluss. A sociedade em que vive esse moderno menino de aço, é um retrato de tudo que há de pior em uma sociedade decadente.
Na clássica adaptação da Disney de 1940, o artesão Gepeto é o responsável pela criação do boneco de madeira. Já nesta adaptação é algo totalmente diferente. Gepeto aqui se trata de um inventor armamentista que cria um ótimo robô de guerra com a pretensão de vender para o exército. Gepeto é casado e em dado momento, sua esposa está sozinha com o boneco e não sabe muito bem pra que serve o pequeno menino de metal. Ela decide usar o protótipo para fins doméstico e por fim, sexuais, e acaba morrendo no processo. Ao chegar e ver a esposa morta, Gepeto é obrigado a ocultar o cadáver da esposa para não gerar investigação e nesse meio tempo, Pinóquio acaba por fugir e desbravar o mundo sozinho.
O grilo falante das histórias clássicas, é substituído aqui por uma barata falante que está desempregada, desalojada e vive de seguro desemprego. A preguiça parece ser uma de suas principais características, o clássico bon-vivant. Na busca por um lugar para ficar, acaba por encontrar uma brecha dentro da cabeça de Pinóquio, vez ou outra alternando alguns fios, alavancas e botões, sem entender o peso de suas ações e forçando o boneco a ser a máquina de guerra que foi construído para ser.
O pequeno Pinóquio desbrava o mundo, encontra uma fábrica de brinquedos e se torna o funcionário mais efetivo da produção (trabalho esse que era desempenhado junto a muitas outras crianças. Todas vitimas de sequestro e tráfico infantil). Após o colapso dessa aventura, Pinóquio segue em busca de sentido para sua vida e caminha livre por uma densa floresta. Gepeto visando os lucros que ganharia com a venda do menino de metal, sai em busca de encontrá-lo, agora cada qual está rumando para aventuras individuais e passarão por grande perigos.
A história de Pinóquio já é bastante antiga e está no imaginário popular há um tempo, então daqui em diante, comentarei algumas passagens que retratam essa podridão na sociedade que o autor retratou. De infantil não tem nada, de simples menos ainda, é um tom critico de uma sociedade falida que busca tirar vantagem constantemente um do outro, e seus interesses estão muito acima de qualquer código de ética ou a boa e velha moral. Muitos crimes, drogas, tráfico humano, charlatanismo, golpes, avareza exacerbada e uma repaginação ou a volta ao terror original que foram concebidas obras clássicas antes das adaptações Disney.
Essa zona abaixo da linha estará cheia de Spoilers, então caso não queira saber, te agradeço por chegar até aqui e reforço a recomendação. Leia e se maravilhe com essa edição!
A VIOLÊNCIA E O TRÁFICO NAS RUAS
Em determinado momento, o autor apresenta o perigo que mora nas ruas. Há dentre as sombras do becos escuros, traficantes de órgãos, traficantes de drogas, pedófilos e abusadores que estão sempre a espreita em busca de novas vitimas. Há uma cena em que atacam moradores de rua e tiram a sangue frio os órgãos que estão procurando, para revender a seus compradores do submundo. Momento esse em que um homem tem seu olho arrancado e outro o próprio coração. O que mora no mais bizarro ainda, é que aqui as fábulas se misturam, e os compradores do coração é nada mais nada menos que os 7 anões (entenderá o motivo mais adiante). Pinóquio acaba por parar numa fabrica de brinquedo por conta de um dos golpistas que sequestram crianças e levam para essa fabrica, fingindo lá ser um lugar muito melhor. Toda vez é muito bem pago pelo serviço e com isso a escravidão infantil só cresce dentro da indústria dos brinquedos (questões que infelizmente até os dias de hoje acontecem em países menos desenvolvidos). A aventura aqui para a ilha encantada, se dá por meninos que foram libertos dessa fábrica e que mesmo marginalizados, mesmo “adultizados” no pior sentido, ainda são crianças, ainda sonham com doces, brincadeiras e diversão. Eis então que a saga por esse lugar começa.
ENTRE FÁBULAS E O ESTUPRO COLETIVO
Aqui temos também a participação de Branca de Neve, que muito diferente de sua versão popular, é mantida na casa dos anões e inicialmente está numa espécie de coma, de animação suspensa. O coração que os anões encomendam é pra ela, ela está morrendo e eles irão fazer o transplante para traze-la de volta a vida. Lindo né? Não!
O motivo que querem trazer Branca de volta é por conta de que ela morreu de exaustão, os anões todos abusavam sexualmente dela, mantinham trancada em casa e o faziam constantemente, até que ela não aguentou mais. Nesse pedaço da história, eles conseguem ressuscitá-la, mas após acordar e ver onde estava, consegue fugir e se joga de um penhasco para não ter que passar por tudo de novo. Os animais que permeiam a história original, aqui, são expectadores que assistem essas atrocidades pela janela, todo de forma pacifica. É um retrato de nossa sociedade que consome todo tipo de noticia terrível, se horroriza com tudo, mas não fazem nada para impedir. Quando o autor escreveu essa versão, nem havia o apelo das redes sociais, acredito que se fosse atualizada, os animais filmariam e postariam em busca de likes, e continuariam apáticos com a situação).
A CRITICA A RELIGIÃO E O PRECONCEITO SEXUAL
Aqui temos uma critica bem ácida em relação a religião. Um dos personagens desenvolvidos para a história, Wonder, fica cego (por conta desse traficante de órgãos), volta a enxergar por um olho robótico que o encontra (essa loucura do olho vivo robótico é fábula e acaba por virar um personagem simbiótico). Sua conclusão com tudo isso é: O diabo me cegou e por um milagre de Deus eu voltei a enxergar. Com isso, tendo vivido essas e outras experiências terríveis, Wonder diz ter conversado com Deus e agora ele precisa ser seu emissário. A loucura em torno da fé cresce tanto, que a missão de Wonder é inundar a cidade para causar um novo dilúvio, pois esse foi o pedido que Deus fez pra ele. Quando questionado, Wonder se torna violento ao extremo, mata um homem que o questiona e oferece em sacrifício para Deus.
Veja, todo esse absurdo é bíblico, tudo foi abordado na Bíblia decorrente da religião judaico-cristã, aqui foi tirado de contexto, mas não causa menos impacto que a original. Por isso o autor abordou, como é perigosa a interpretação religiosa em relação as dores do mundo, milagres existem ou é apenas um subterfugio para atender suas vontades reprimidas?
Em outro momento, nosso Baratão falante recebe um mosquito evangelizador em sua casa. Após tentar evangelizar o preguiçoso, o mosquito se vê ofendido por piadas e discursos homossexuais, e começa a se perder… deixando claro sua homossexualidade enrustida, e tentando com máximo esforço esconder o que sentia em nome de sua religião, para evitar sair do armário (nem preciso de paralelos aqui né, extremamente literal).
O FASCISMO QUE GANHA SUA FORÇA NO ÓDIO
Dado momento as crianças conseguem chegar na Ilha Encantada, mas aqui ela é comandada por um monarca que não está nem aí pra nada. A ilha está um lixo, cheio de excrementos e deterioração, as crianças demoram muito para chegar, e não conseguem sair mais. Pinóquio também está lá, há centenas de crianças morando nas ruas, por não terem o que comer, nem onde morar. Atraídas pela infância sonhadora. Ao mesmo tempo, essa ilha é o ponto de trafico de armas, e há uma força ali que deseja derrubar o poder estabelecido, o palhaço armado então reúne as crianças da ilha num circo, faz uma apresentação super divertida e após esse momento realiza um discurso de ódio tão forte, que vai inflamando os pequenos, causando uma atmosfera terrível, e transformando as crianças em lobos raivosos sedentos pro sangue. Então entrega uma bandeira para cada um, instaura uma espécie de novo partido. Todos por estarem desiludidos compram essa batalha e nasce ali uma espécie de novo partido fascista revolucionário (vale dizer que todas as referencias aqui são abordadas como uma força revolucionária socialista ao melhor estilo Fidel e sua guerra. O símbolo, o discurso e o método lembram muito, até mesmo a ilha pode ser considerado Cuba).
Esse tipo de abordagem é muito comum, para os que nada tem, qualquer promessa de dias melhores seduz. No trecho em questão, vale lembrar que são crianças sem um lugar no mundo, e agora que foram adotados por essa nova guerra, vão se dedicar ao máximo para que finalmente tenham algum sucesso na vida. Esse discurso de ódio vale lembrar que é muito utilizado na politica, uma forma populista de abordar os problemas do lugar e prometer mudanças reais, e se preciso for derramar algum sangue para isso, assim o farão. E nem é preciso dizer que após a revolução, os meninos são aniquilados e esquecidos, triste realidade.
AS ATROCIDADES DO MUNDO
Ainda tem muito mais coisas a abordar, mas encerraremos neste tópico. Há criança que cresceram vendo a violência do pai em casa, replica isso na rua. Há lixo radioativo sendo jogado indevidamente no mar e o peixe que come esse lixo, é a Baleia que mais tarde Gepeto estará dentro (assim como na história original). Há criticas sobre o entretenimento fútil. Há podofilos que buscam crianças de rua para abusar, mulher morta e enterrada em partes numa tentativa de ocultação de cadáver, alcoolismo, depressão e suicídio.
Pinóquio é um menino, mas por ser um robô, não é dotado de sentimentos humanos, não há malicia, não há ego, não há amor. Foi criado para ser uma máquina de guerra e mata sem o menor problema. Extremamente efetivo, resistente e obediente, Pinóquio se torna uma efetiva máquina de matar. Diferente da adaptação Disney, ele não tem motivo algum para buscar se tornar um menino de verdade. Amor não é uma questão, mas por ser ingênuo, os primeiros gestos de afeto não lhe causam repulsa, e em determinado tempo, por mais que tenha sido adotado para fazer as vezes de um menino de verdade, não é bem isso que ele consegue ou quer emular.
Aqui a principal critica em relação ao cerne do personagem, é como todos buscam nele, uma forma de se beneficiar, todos buscam uma forma de utilizar o robô para seus desejos, sejam práticos, emocionais ou metafísicos. O seres humanos são retratados como aqueles que buscam o conflito toda hora, seja ele no campo das ideias ou confronto físico. E por fim vemos que por mais que nossas questões possam parecer o centro do mundo, todas elas se findam, pois se continuarmos no mesmo egoísmo, violência e ódio, um dia, não teremos mais nada para o que lutar, pois não sobrará nada. Tudo que é humano passará, Pinóquio não!
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