João Vitor Gallo 06/06/2016
Desde a tenra infância Locke Lamora demonstrou aptidão para a arte da ladroagem, aos 5 anos violara a Paz Secreta afanando as bolsas cheias de dinheiro de alguns membros da guarda citadina, depois disso os seus roubos causaram ainda mais problemas por chamar a atenção demais. Esse era o problema do garoto, Locke Lamora roubava demais, ou melhor dizendo, ele tinha uma inclinação natural para a grandiosidade no ato de surrupiar e afanar. Nada poderia ser simples, direto e cirúrgico, o roubo tinha de mais artístico, tinha de ser mais teatral, tinha de ser… mais. Devido a sua tendência em tentar fazer algo mais grandioso, que algumas vezes acaba fugindo do controle, faz com que Locke acabe indo morar com Padre Correntes, um ladrão sacerdote, que também é um sacerdote dos ladrões, e com ele acaba encontrando um lugar onde possa se encaixar, e onde inclinação natural pode ser mais útil e valorizada, obviamente com uma pequena ajuda de Correntes para colocar o devido bem senso na cabeça do garoto para aprender a medir suas atitudes.
Correntes é o idealizador de um novo tipo de ladrões, não aqueles punguistas baratos que roubam simplesmente pelas habilidades de subtrair carteiras ou por meio das ameaças, mas pela fineza da trapaça executada com perícia e inteligência, ladrões que esvaziam bolsos e cofres pela astúcia de uma falcatrua planejada cuidadosamente, aprimorando técnicas e se especializando na arte do engano, não com arrombamentos e violência desmedida. Um tipo de ladrões que usam mais a cabeça do que a mão-leve. Esses são os Nobres Vigaristas. Onde mais um malandro criativo e com uma moral um tanto quanto questionável como Locke Lamora se encaixaria com tamanha perfeição?
“Nós aqui somos ladrões de outro tipo, Lamorra. A farsa e o engodo são as nossas ferramentas. Não acreditamos em trabalho árduo quando uma cara falsa e uma bobagem bem-bolada podem ser tão mais eficazes.”
Além dos espólios das suas trapaças serem consideravelmente muito maiores dos que aqueles que arrombadores e batedores de carteira conseguem se esgueirando por vielas sujas e escalando telhados, o verdadeiro fator motivacional para eles é o prazer pelo sucesso de uma fraude orquestrada e realizada com elegância e esperteza, pela simples diversão de ser mais esperto do que os outros. Viver bem com o dinheiro conquistado nos golpes, apreciar tudo o que a vida tem de bom, como diria a música do Matanza, essa é a vida dos Nobres Vigaristas. Os resultados dos seus roubos servem mais para financiar outros golpes do que simplesmente viver uma vida hedonista de luxos extravagantes a olhos vistos, afinal a chave do sucesso é não parecer que eles são a gangue mais rica da cidade, até para evitar certos tipos problemas que a atenção traz consigo, muito embora isso não queira dizer que não se possa viver com certo conforto.
“A nós… mais ricos e mais espertos do que todos os outros!”
As Mentiras de Locke Lamora, o primeiro volume da série Nobres Vigaristas do escritor americano Scott Lynch, foge daquele clichê tradicional de mundos de fantasia que remetem à Inglaterra medieval, desta vez temos algo um pouco mais original, e a história principal se passa na cidade de Camorr, inspirada obviamente em Veneza, tanto pela geografia local, com as inúmeras ilhas separadas por canais e ligadas por pontes, quanto pela cultura local mostrada nas roupas, no comércio e nos próprios nomes de locais e personagens que lembram o italiano. Também vale destacar que tal qual a República de Veneza que era regida por um doge, ou seja, um duque, assim também é com Camorr, aliás, nessa época a cidade era conhecida como “Sereníssima República de Veneza”, e curiosamente a cidade fictícia durante a história também é chamada de “Sereno Ducado de Camorr”. Devo falar que particularmente gostei muito de toda a construção e descrição em relação à cidade, desde as partes passadas entre as vielas sujas e canais estreitos cujas águas são infestadas por tubarões, partes estas ligadas quase sempre ao submundo do crime, e aquelas em que os Nobres Vigaristas vivem a sua outra vida, com as altas e magníficas edificações em que habitam os nobres, feitas de um material criado por uma antiga e superior civilização, ou em sua confortável casa, a sua verdadeira casa, escondida sob o templo de Perelandro.
“Quanto mais no controle o alvo pensa que está, com mais facilidade responde ao verdadeiro controle.”
Muito da cultura do submundo de Camorr também tem inspirações evidentes na máfia italiana, principalmente a sua estrutura e práticas de iniciação, aliás, “Capa”, é um título dentro do universo do livro que se refere aos chefes dos chefes das gangues, a aqueles que estão no topo do poder, bem como na máfia usam o termo “Capo”, para chefe. Eu até fiquei pensando se o próprio nome “Camorr” não teria vindo de “Camorra”, o que é bem possível.
Algo que me deixou curioso foi a questão dos Ancestres, a antiga civilização que construiu Camorr e fabricava o Vidrantigo, uma substância praticamente inquebrável e que irradiava luz de alguma forma. É uma boa adição para esse mundo e pessoalmente gosto muito desse tipo de coisa na literatura fantástica, algo que se perdeu no tempo, o conhecimento de toda uma sociedade mais avançada que é incompreensível para os que herdaram o que eles deixaram para trás, é algo que se parece muito com a admiração pelas construções romanas que os europeus tinham depois da queda do Império Romano. Falando rapidamente, também as religiões, as atividades e festividades, a forma com que utilizam alquimia, seja para criarem itens caseiros, plantas especiais ou animais híbridos, também dá um charme especial para a história.
Além dos cenários todos os personagens são muito bem desenvolvidos, todos eles seguindo seus próprios conceitos morais, fato que fica claro em relação ao roubo pelos Nobres Vigaristas, que o consideram como “um ofício honrado” para ganhar a vida e não dão muito valor ao produto do roubo em si, mas a própria sensação de terem suas habilidades e astúcia testadas e conseguirem demonstrar que são de fatos mais espertos que todos os outros, ou mesmo no ato de se disfarçar de clérigos, o que seria um sacrilégio para alguns, mas que ao mesmo tempo mostram grande respeito pelos deuses e as ordens religiosas. Os Nobres Vigaristas são um bando de canalhas, mentirosos e trapaceiros, mas tratam uns aos outros como uma verdadeira família, já que todos são órfãos, e o nível de confiança entre eles é notável, e ao mesmo tempo que são capazes de aprontar atos moralmente condenáveis, também demonstram bom coração. Não são nem heróis, nem vilões, nem estão exatamente dentro daquela ideia romântica do “ladrão cavalheiro”, mas são personagens críveis dentro da criação que tiveram e de sua concepção do que é a melhor maneira de viver a vida, e isso vale também para todos os outros personagens.
Entre os capítulos há interlúdios contando sobre a infância de Locke, o que dá mais dinamismo a história ao intercalar seus golpes com a sua fase de aprendizado, e até mesmo atiça a curiosidade do leitor sobre o passado do Nobre Vigarista. Algumas histórias se perdem prolongando por demais essa etapa, deixando muito do personagem como criança para tentar dar esse tipo de construção mais aprofundada dele como adulto, mas que por se alongar demais acaba deixando as coisas muito arrastadas de início, mas ao usar dessas pausas para aos poucos ir revelando mais do personagem e deixar o leitor mais curioso sobre a vida dele, Scott Lynch consegue ao mesmo tempo deixar a história fluída e aumentar o carisma do Locke Lamora e de seus comparsas. Além disso, esses interlúdios servem para explicar melhor algumas atitudes e explorar mais a própria cultura da cidade, tendo pontos relevantes para a trama em si. O ritmo que o autor consegue imprimir no livro é digno de nota, o livro é divertido, não apenas pelo humor sempre presente na história, mas pela própria forma com que foi escrito.
As Mentiras de Locke Lamora é um livro externamente divertido, recheado com golpes bem elaborados, situações inesperadas, humor cínico, personagens bem construídos dentro de situações críveis no contexto em que estão inseridos e reviravoltas que vão agradar a quem quiser se aventurar pelos canis de Camorr ao acompanhar as mentiras e trapaças dos Nobres Vigaristas, e depois do final arrebatador da história eu tenho que confessar: Estou com uma vontade imensa de rever estes canalhas golpistas! Só lembrando que para aqueles que gostaram do livro, o segundo e o terceiro volume da série, Mares de Sangue e República de Ladrões, respectivamente, já foram publicados no Brasil.
Arrivederci!
site: https://focoderesistencia.wordpress.com/2016/06/06/as-mentiras-de-locke-lamora-nobres-vigaristas-vol-1-scott-lynch/