Procyon 09/09/2022
O Homem Invisível ? Resenha
??Eu posso ficar invisível!?, repeti. Fazer isso seria algo que transcenderia a mágica. E contemplei, dissipadas as dúvidas mais nebulosas, uma visão magnífica de tudo o que a invisibilidade poderia significar para um homem: o mistério, o poder, a liberdade.? (p. 131)
O romance de H.G. Wells O Homem Invisível (1897), que sucede A Máquina do Tempo (1895) ? um sucesso instantâneo que proporcionou ao autor o título de inventor do romance científico ?, segue o recurso recorrente do autor em situar a narrativa em uma cidade/região real. O livro apresenta Dr. Griffin como personagem principal, um cientista obcecado em encontrar a fórmula da invisibilidade e que perde vários anos de sua vida nessa busca incessante. Após várias experiências, combinações e tempos de solidão em seu apartamento, o doutor consegue encontrar a fórmula perfeita e, após aplicá-la em uma gata, utiliza-a em seu próprio corpo, tornando-se invisível.
H. G. Wells, contista de histórias fantásticas, narrativas que versaram sobre sonhos humanos, o tempo futuro e suas implicações sociais, além de tecnologias antevistas, também foi precursor, ao lado do francês Jules Verne, da moderna ficção científica ? embora tenha se referido por vezes aos textos desta fase inicial de sua carreira como ?romances científicos?. Sua imaginação foi responsável por clássicas e imperecíveis imagens simbólicas desenvolvidas pelo gênero, como a viagem temporal A Máquina do Tempo, a invisibilidade em O Homem Invisível, a questão da natureza humana e seu lado bestial em A Ilha do Dr. Moreau (1897), a invasão belicosa marciana em A Guerra dos Mundos (1898) e as viagens espaciais em Os Primeiros Homens na Lua (1901). Enquanto Verne observa a tecnologia de sua época e a transpõe para situações em que ela se torna cotidiana, Wells toma da ciência apenas a retórica, propondo situações fantásticas.
O Homem Invisível compõe lugares e pessoas comuns com situações ou personagens absurdas. É notório a riqueza do tema e suas variadas possibilidades de abordagem e de interpretação. A vida cotidiana retratada por Wells ? altamente regrada e limitada pela sociedade industrial ? parece esconder a brutalidade inflamada no homem, fazendo com que esses novos ?poderes? desvelem e exponham a vileza do ser humano. A personagem Griffin é desde o início apresentada como um sujeito medíocre, um crápula que não hesitara em roubar o próprio pai ? e que levaria o suicídio deste.
?Fui ao enterro do meu pai. Com a minha cabeça ainda na pesquisa, não movi um dedo para salvar sua reputação. [?]
Não senti nenhum remorso por meu pai. Ele me pareceu vítima de seu próprio sentimentalismo tolo. A hipocrisia vigente exigira minha presença em seu enterro, mas no fundo eu não tinha nada a ver com aquilo.? (p. 133)
Contudo, por outro lado, Wells consegue fazer com que, em um ou outro momento, o leitor ?simpatize? com esse homem comum ? mesmo sendo um cientista ? a quem foi dada a incerta dádiva de se tornar invisível. No derradeiro momento ? o da morte ?, o autor demonstra que seus captores não são, nem melhores, nem piores que ele.
Para além de um livro sobre solidão e incompreensão, há espaço para paralelos com a modernidade: Griffin, ao se tornar invisível, pensa ter adquirido total ?liberdade? (que, na verdade, se configura como impunidade) para realizar qualquer ato ? como o voyeurismo de observar sem ser observado ?, porém, essa habilidade, assim como o progresso do humano moderno, tem um preço: assim como O Homem Invisível necessita estar totalmente despido de roupas no gélido inverno londrino; o homem moderno, sob controle da tecnologia, despe-se da própria humanidade em prol de um progresso metafórico e estritamente idealista (projetando um mundo onde ?nossas liberdades? estariam reinando). O que se configura, entretanto, é o desmantelamento dessa sociedade industrial, desmoralizada pela tecnocracia racionalista que usa de uma suposta ciência para fins pouco humanísticos. É possível dizer que Wells, um jornalista científico, foi premonitório ? um viajante do tempo, previdenciado pelos colapsos sociais do século XXI?
Em última análise, é um romance que constrói uma notável história sobre ambição, horror, e a capacidade do homem de se corromper pelo saber científico quando usado de forma abusiva. É um bom livro, que dialoga com a contemporaneidade ? por mais que eu prefira a apoteose modernista de 2001: Uma Odisseia no Espaço, de Arthur C. Clarke.